9.11.03

O PORTUGAL DOS PEQUENINOS FEITO PELAS SUAS LEITURAS

Por diversas vezes, neste blogue, tem sido comentada a situação da "cultura", com particular destaque para os teatros nacionais. Este fim de semana, dois "comentadores" devidamente encartados, M. M. Carrilho e Augusto M. Seabra, pronunciaram-se sobre o assunto. Carrilho, no Expresso, com o neologismo "rosetar", quis significar que o Governo estava a transformar em regra aquilo que poderia ser considerada uma excepção, em termos de eficácia e de resultados globais da actividade governativa. Seabra, por seu lado, "atacou" o "síndrome" Teatro Nacional D. Maria II num conjunto de reflexões que reproduzo, já que, como lembra o crítico, o Público, ao fim de algum tempo, "limpa" as suas versões on line. É mais uma mecha para a fogueira onde, parece que a gosto masoquista, Amaral Lopes se compraz desnecessariamente em arder.

Os Infortúnios da Casa de Dona Maria

Por Augusto M. Seabra

A avaliar pelas notícias, o sucesso deve sorrir para as bandas do Teatro Nacional D. Maria II, entidade do Ministério da Cultura situada em Lisboa ao Rossio: lotações esgotadas para os últimos dias de "Loucos por Amor" na Sala Garrett, prolongamento de carreira de "Desejos Brutais" na Sala Estúdio. É um conforto - ou será mesmo?

Pensando bem, afigura-se uma primeira questão: entre "Loucos por Amor" de Sam Shepard, com Catarina Furtado, e "Desejos Brutais" de Paula Vogel, com Rogério Samora, o que substancialmente determina em termos de repertório, mas também de "casting" - chamemos-lhes assim - nas suas virtualidades de apelo público, que um espectáculo esteja alojado na Sala Garrett e outro na Sala Estúdio? Porque não inversamente? Tanto mais que...

Pensando bem, afigura-se uma segunda questão: a que propósito está "Loucos por Amor" em cena no D. Maria, Teatro Nacional? Com a capacidade que todos lhe (re)conhecemos em chamar as atenções para as suas inúmeras actividades em capas de revistas, Catarina Furtado explicou sem margens para dúvidas como interpretar May - papel que por cá já fora desempenhado por Alexandra Lencastre e no cinema, esplendorosamente, por Kim Basinger - era um projecto seu. Muito bem. Ora, o espectáculo foi levado à cena no Centro de Artes de Lisboa; a que propósito é que foi depois parar à Sala Garrett do D. Maria ? Onde é que coisa assim já se viu? Há mistério!

Retomando as notícias que foi havendo ao longo do ano, em lugar de mistério talvez se dê antes mais prosaicamente com algo que se chamará "tapar um buraco". Na programação da responsabilidade do anterior vogal da comissão de gestão João Grosso estava prevista para esta altura uma outra peça, "D. João II" de Osório de Castro, encenação do próprio Grosso - que se demitiu a 1 de Julho. Ora, apesar de logo depois ter surgido a indicação de outro nome, o de António Lagarto, a verdade é que até hoje nada - quatro meses volvidos, o D. Maria continua entregue a uma comissão de gestão presidida por Manuela Correia, cujas competências para o cargo se ignoram.

Há entretanto neste compasso de espera um episódio irónico e em último análise bem demonstrativo de uma incúria de gestão dos aparatos culturais do Estado. Chamemos-lhe o episódio da "Castro".

Ricardo Pais encenou o texto de António Ferreira em Março deste ano, no outro Teatro Nacional, o São João do Porto. Fê-lo, aliás, admitidamente, como proposta de programação de um teatro nacional: "Agora sinto-me mais condicionado pelas imposições éticas do distribuidor da herança dramatúrgica a que eu, como director do Teatro Nacional, me sinto obrigado." A que propósito retomo agora estes propósitos?

As minhas reservas de vária ordem ao espectáculo, tive ocasião de as exprimir, e também não me impediram ilações que eram quase da ordem das evidências: "Não é pequeno mérito dar a conhecer um tal clássico, dar a ouvir do mais belo português que se escreveu para a cena (...). Eis verdadeiramente um caso em que se auguraria uma futura remontagem (...) - nada que não suceda com frequência, tanto mais com um inegável sucesso público" (PÚBLICO de 11/4). Pois bem a "Castro" vai ser reposta no São João e, surpreendentemente, não será apresentada também no D. Maria. Faz isto algum sentido?

Se se fala de "clássicos", e designadamente de "clássicos portugueses", relembro apenas que "As Barcas" de Gil Vicente e "Frei Luís de Sousa" de Garrett, ambas produções do São João, foram posteriormente também apresentadas no D. Maria; então?

Pessoalmente, sinto-me tanto mais à vontade para falar deste "lapso" quanto não só também exprimi reservas em relação ao espectáculo, como sobretudo, e notoriamente, estou longe de comparticipar do mais usual coro de encómios que publicamente se ergue em torno das propostas de Ricardo Pais. E mais, e a um outro nível: não desconhecendo o "curriculum" do indigitado e "em suspenso" António Lagarto, a relação de proximidade alicerçada em 25 anos de trabalho conjunto daquele cenógrafo com Pais poderia fazer-me recear por um aparelhamento excessivo entre os dois Teatros Nacionais. Donde, é maior a ironia de soçobrar uma operação conjunta tão elementar em termos de gestão. Ironia evidentemente tanto maior quanto, se se fala de "clássicos", e designadamente de "clássicos portugueses", a eles os teatros nacionais, e no caso o D. Maria, deveriam estar particularmente votados, segundo textos programáticos institucionais e os valores ideológicos dominantes, nomeadamente retomados no conjunto de banalidades que é o programa cultural deste Governo.

E tudo isto se arrasta, continuando prometido e sempre remetido para as calendas o novo modelo orgânico do Teatro, missão que havia sido cometida à comissão de gestão presidida pelo hoje secretário de Estado Amaral Lopes na já remota data de Setembro de 2000! E é este homem que, na manifesta incapacidade da figura que faz de conta que é ministro da Cultura, se ocupa da gestão corrente dos assuntos culturais do Estado? E depois que havemos de esperar?

Isto já não é um compasso de espera - é uma perda e um logro institucionalizados. Quando se olha à volta e se observam exemplos como os das Artistas Unidos ou de Mónica Calle, como o da Cornucópia, que em breve, resultado ainda de uma co-produção com o Nacional que foi a única proposta de crédito da casa em anos recentes, estreará "Anatomia Tito" de Heiner Müller, então pergunto-me: mas não seria mesmo melhor fechá-lo, ao Dona Maria? Ou é só para manter o edifício aberto?

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