18.11.03

JACQUES DERRIDA




1. Para fugir um pouco à confrangedora boçalidade da nossa vida pública, lembrei-me que está a decorrer em Coimbra um colóquio em torno da obra de Jacques Derrida. Trata-se de uma figura fundamental do pensamento filosófico contemporâneo, conhecido através da "teoria da desconstrução" ou "desconstrutivismo". Derrida nasceu em El-Biar, na Argélia, em 1930, onde passou a infância e a adolescência, num ambiente marcado pela colonização francesa e pela guerra. Em 1949 viajou para Paris e ingressou no curso preparatório para a "École Normale Supérieure", onde ingressou três anos mais tarde. Terminou os estudos superiores com uma dissertação acerca da filosofia de Husserl. Em 1956 é admitido na "agrégation", e recebe uma bolsa como "special auditor" para a Universidade de Havard, em Cambridge, onde trabalha inéditos do mesmo Husserl. Entre 1957-1959, presta serviço militar na Argélia como professor numa escola para filhos de militares. De regresso a França, profere a sua primeira conferência. A partir de 1960, ensina filosofia na Sorbonne e publica os seus primeiros trabalhos nas revistas "Critique" e "Tel Quel". Passa a ensinar, a convite de Hyppolite e de Louis Althusser, na "École Normale Supérieure", onde permaneceu, até 1984, como professor-assistente. Em 1966, apresenta nos EUA a comunicação "Estrutura, Signo e Jogo no Discurso das Ciências Humanas", um marco decisivo. Publica, em seguida, os seus três primeiros livros: "Gramatologia", "A Escrita e a Diferença" e "A voz e o Fenómeno". Entre nós, saiu na Minerva de Coimbra, o pequeno opúsculo "Cosmopolitas de todos os países, mais um esforço !", em 2001.

2. Dele, a propósito de vivermos um mundo perigosamente à beira de perder o gosto pelos livros, pela leitura e pela literatura, e em homenagem à sua defesa do "cosmopolitismo", ficam estas "literaturas deslocadas", um texto de 2000.

Escolher o seu lugar, movimentar-se livremente: é este o direito que o nosso mundo cada vez mais nega aos escritores. E de novo, contra a proibição, queremos afirmar o lugar da literatura, o seu lugar neste momento. Que as literaturas tenham um lugar. Um novo espaço literário, onde todas as oportunidades estão menos reservadas do que nunca, que se abre hoje, sob a forma abstracta, clássica ou menos clássica, à filosofia ou à ciência, à poética ou à teoria literária. As deslocações de que falaremos transformam-se também, e dispomos de vários exemplos, em questões de vida ou de morte. Jogam--se todos os dias o corpo das obras e o próprio corpo dos escritores.

Que significa hoje para tantos criadores, conhecidos ou não, este deslocamento que consiste tão frequentemente em já não ter lugar? Consiste em ser enviado para a morte ou expulso do seu país sob a ameaça de encarceramento, de tortura, de execução ou de assassinato. Para poder escrever e falar livremente, demasiados homens e mulheres vêem-se obrigados a abandonar os lugares da sua língua e das suas recordações. Cruzam a fronteira ou são presos na sua terra, fechados entre quatro paredes, na noite de um reduto daí em diante confinado à cela ou à residência vigiada. E para aceder à luz do espaço público, na surda resistência de uma literatura clandestina ou críptica, acontece também que outros lugares, os da retórica desta vez, se convertem no seu último recurso para enganar a censura.

Trata-se de um facto inédito? Em quê e em que medida? Que novidade estaria a acontecer hoje com a literatura ou, mais precisamente, entre a literatura e o lugar? Partimos de uma hipótese: algo novo está a ocorrer nisto, porque uma certa repetição não exclui, antes pelo contrário, a invenção de violências inéditas todas relacionadas com o lugar, com o que ocorre e se desloca para onde se produz uma determinada escrita. Para responder à irrupção desta novidade, é necessário recordar e analisar todas as analogias. Anterior a qualquer «movimento literário», terá surgido outro, que também terá deslocado e perseguido uma determinada literatura. Não, certamente, toda a literatura, não a que se celebra a partir do momento que serve ou reflecte a identidade própria de um grupo, de um Estado, de uma nação, de uma religião, de uma língua ou de qualquer outro poder instituído. Mas tolerou-se sempre mal aquela que, pelo menos em parte, questiona esse estatuto ou uma tal missão, como se não existisse outro espaço a não ser aquele que lhe é negado, e em todo o caso o lugar de repouso, a sedentariedade, a gregaridade ou a raiz. Daí tantos fenómenos típicos que ritmam a história da literatura, inclusive na sua modernidade: literaturas em êxodo, literaturas no exílio, literaturas no estrangeiro, literaturas estrangeiras na sua própria língua, literaturas nómadas, literaturas clandestinas, literaturas de resistência, literaturas proibidas, literaturas fora da lei e sem lugar. Lugares proibidos, muito mais além do exemplo académico de «Platão-e-os-poetas-expulsos-da--cidade»: isto foi o que se quis dizer às literaturas ao deslocá-las permanentemente, como se simplesmente, ao privá-las de um lugar onde se desenvolvessem, se tratasse de impedi-las que chegassem ou, dito de outra maneira, que tivessem lugar. Certamente, este fenómeno não é novo, embora talvez ainda aguarde que se escreva a história de outro modo (o que também poderia ser uma das nossas tarefas). Está documentado por um enganador arquivo de exemplos. A censura, o anátema, a excomunhão, a ameaça de morte ou de prisão: são estas as figuras de uma violência que terá empurrado tantos escritores para o outro lado da fronteira ou, por vezes, a exilar-se no seu próprio país. Desde que apareceram, se pode dizer, as literaturas tiveram dificuldade em conseguir ser aceites mesmo nos espaços onde pareciam nascer, nas culturas, nos países, nas nações, nos Estados a que aludiam ultrapassando os seus limites, dos que falavam enquanto forjavam a sua língua. Que ocorre, pois, com a literatura? Até que ponto partilha a esse respeito o destino da palavra ou da escrita, geralmente livres, na ordem do pensamento, da filosofia, da arte ou da ciência? Na ordem genérica «do intelectual» que o novo lugar do saber e da sua mediatização nas sociedades modernas designa tão frequentemente como potencial fonte de poder e, por isso mesmo, como um alvo privilegiado se se revolta contra a sua exploração, se se mantém crítica? Partilhar o destino citado impõe-nos, certamente, as mesmas responsabilidades, as mesmas solidariedades e os mesmos actos de resistência. Não os evitaremos. Mas? acaso não devemos reflectir também sobre o que possa corresponder-nos com mais especificidade nas apostas que hoje se anunciam sob a denominação concreta de literárias?

Torna-se necessário fazer estas perguntas, enriquecê-las e diversificá-las conforme as histórias, as culturas e as línguas. Sobretudo, dever-se-á submetê-las à prova da singularidade das obras e dos acontecimentos. Estas questões impõem que se tenha em conta o fundo mais antigo. No momento de analisar e combater hoje as novas formas de perseguição, que se refinam de um continente para o outro, não se pode omitir a recordação da repetição desta história. Múltiplos poderes, através de todas as figuras da autoridade, recorrem às armas e às alegações tradicionais, mas também a técnicas e procedimentos inéditos. Estes ajustam-se sem demora a tudo aquilo que transforma radicalmente o espaço público, a edição, os meios de comunicação, a diplomacia, o direito internacional, a organização dos Estados, o mercado?, quer dizer, a outros tantos conflitos físicos ou simbólicos: as guerras teológico-políticas, as guerras inter-étnicas, as guerras económicas e, naturalmente, através de todas estas mutações, à guerra das línguas e às guerras na língua. Violências inquisitoriais sem precedentes atiçam--se contra aqueles e aquelas que, em todas as partes e das maneiras mais diversas, resistem à opressão física ou simbólica, recusam os dogmatismos e protestam em nome de outro pensamento, de outra experiência da obra e da língua, da obra da língua.

De que outra maneira estas perseguições trazem a marca do nosso tempo?

Porquê, dentre as suas vítimas, se contam hoje tantos escritores? Porquê tantos homens e mulheres para quem a palavra pública se inscreve na ficção novelesca, no poema, na invenção de novas formas literárias? Reformular perguntas como estas será preparar novos conceitos e novas estratégias para uma resistência internacional. Uma resistência que, hoje, por veneráveis que sejam, já não se pode reduzir às formas de um cosmopolitismo regulado pelos conceitos tradicionais do autor, do cidadão (que fazem do escritor cidadão do mundo), do Estado e da nação, por exemplo numa República das Letras ou um Comité de Vigilância dos escritores Antifascistas. Na sua história, rica e complexa, o próprio valor da tolerância já não é suficiente. E apelamos a outro conceito da hospitalidade.

A melhor homenagem que se pode prestar a estes grandes testemunhos do passado consiste em não nos contentarmos em celebrá-los. Urge outra coisa. Devemos (mas? poderemos?) responder?, e fazê-lo de maneira diferente: responder de outra maneira a outras ameaças, e responder também com a que já se escreve, em mais de uma língua, como outra história.

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