«Tal como na vida existe muitas vezes uma ilusão biográfica, que consiste em olhar para o que nos acontece como se fizesse parte de uma história cujo fim já se conhece, também na política existe uma ilusão comemorativa, que leva a celebrar os acontecimentos como se, quando eles ocorreram, já se soubesse que destino os aguardava. E, contudo, nada é mais falso. A estas ilusões há que - como Sartre aconselhava - opor a força da contingência na história e da liberdade na vida. Ninguém é dono do sentido dos acontecimentos, ele está sempre em aberto e sujeito às relações de força que, conforme as circunstâncias da mais diversa natureza, ora valorizam um aspecto ora outro: o "espírito" do 25 de Abril de 1974, que se celebra no próximo domingo, é este ano certamente muito diferente do que foi em 1975, em 1986 ou em 2004, por exemplo. Por isso, talvez seja preferível olhar para alguns factores que mudaram completamente o estado do mundo e da pátria desde então. Olhemos para três deles, escolhidos pelo seu significado e pelas suas consequências. Em primeiro lugar, para o desaparecimento das polarizações ideológicas tradicionais. Depois, para a substituição do sentimento de progresso pelo de declínio, com base numa matriz de desconfiança que se generalizou nas sociedades ocidentais. Por fim, para a transformação estrutural da própria política, que tem hoje pouco que ver com aquilo que a caracterizava há trinta ou quarenta anos. Quanto ao desaparecimento das polarizações ideológicas, ele não significa apenas, como se costuma dizer, o fim da oposição capitalismo/ /comunismo, que se associa à queda do Muro de Berlim. Ela significa bem mais do que isso, uma vez que o que o que aconteceu foi que as ideologias deixaram de ser "visões do mundo" capazes de estruturar as sociedades, de motivar as comunidades, de federar os cidadãos ou de alimentar as suas convicções. E, no seu lugar, instalaram-se o indivíduo, o consumo e os media, que se constituíram no quadro de referências nucleares da contemporaneidade. É isto que explica que nenhuma verdadeira alternativa ao capitalismo tenha entretanto surgido no horizonte, nem mesmo quando o capitalismo se aproximou da catástrofe com a avassaladora crise que eclodiu em 2008. É que, como diz Aristóteles, é preciso opor para pensar: sem polarizações que estruturem o pensamento e a acção, o fatalismo e a resignação impõem-se quase inevitavelmente. Sintomático disso é o facto de governos de todo o mundo, fosse qual fosse a sua natureza política, terem reagido do mesmo modo à crise: injecções de fundos públicos para salvar os bancos, planos de relançamento para sustentar a actividade económica e medidas sociais para atenuar os seus efeitos. Como observou Pierre-Antoine Delhommais no Le Monde, "no Japão, em Espanha, na Alemanha, em França, em Itália, na Suécia, trabalhistas, conservadores, liberais, comunistas, sociais-liberais, Bush, Obama, Sarkozy, Merkel, Brown, Zapatero, Strauss-Kahn, Putin, Hu Jintao, todos adoptaram respostas de política económica à crise rigorosamente idênticas." (22.03.2010) O segundo factor emerge naturalmente desta situação. Pressente-se que as elites se e nos enganam, o que leva a que as expectativas de progresso vão sendo soterradas por uma desconfiança que cresce constantemente no meio da desorientação geral. Tudo nos antípodas do optimismo de 1974, consolidando - e é o terceiro factor - uma imensa transformação da política que, por sua vez, se alimenta de várias razões. Entre elas, destaca-se a globalização, que transferiu o poder para uma escala que escapa às políticas nacionais, reduzidas a uma inesperada impotência. Destaca-se também o "distributivismo" orçamental, que se deixou apanhar nas teias de uma cidadania cada vez mais consumista e na tenaz das exigências de curto prazo, que alimentam a "servidão voluntária" do nosso tempo. E destaca-se ainda o voluntarismo sem noção da história ou da complexidade da sociedade, que se ilude pensando que a política tudo comanda e que é tudo uma questão de determinação.»
Manuel Maria Carrilho, DN
6 comentários:
Lapidar; síntese muito boa; descrição lúcida e incontornável que todos os políticos - actuais e passados - assim como "cidadãos", sindicalistas e funcionários deviam ler, digerir e verem-se assim detectados, descritos e catalogados. Como dizia o brusco e super-realista Dr. Medina Carreira, "...o Estado-Providência, herdado do fim da 2ª Guerra, para funcionar, precisa de MUITO DINHEIRO - QUANTIDADES ABSURDAS DE DINHEIRO. Esta - o Estado-Social - foi uma das promessas do 25 e, de um modo geral, a cenoura com que eludiram as pessoas um pouco por todo o mundo ocidental/civilizado/minimamente organizado. Para a esquerda (indigente mental e teóricos-do-caralho), o nacionalismo e o controlo de um povo sobre os seus próprios destinos é, simultaneamente, mau e bom: se "for" em Portugal ou na Itália é mau; já se "for" na ex-Jugoslávia, em Cuba ou na Venezuela é bom! Esta cola nojenta em que se transformou a "União" ajuda à submissão dos vários países às chulisses da Comissão, do Parlamento Europeu e da cáfila de funcionários e "organismos", ao mesmo tempo que nos mantém vulneráveis a especuladores e capitalistas sem escrúpulos e sem produtividade, tal como se não estivessemos na dita "União"; as "injecções" de dinheiro que se deram no passado impunham a condição de Portugal se "desarmar" e comprar tudo feito aos franceses e alemães; quando isto acabar, até os franciús e os boches vão ter dificuldades em impingir o que fazem. Em vez de cada Estado-membro ser forte e orgulhoso de si mesmo, com um Povo que se conhece e faz questão de manter um certa autonomia, temos é uma amálgama não-homogénia de ricos e pobres, fachadas-da-frente "limpas" e ruas traseiras escuras e "sujas". Nas nossas "escolas" não se aprende a ler, a escrever, a contar, a pensar. Não se ensina História: ninguém tem a noção do seu lugar no Mundo e "quem é"; tudo foi desmantelado e substituído por nada. E os "ministros", "jornalistas", "pensadores", "os da esquerda", "os partidos e respectivas juventudes" (que vómito!...), "financeiros" e "setoures" ficam impassíveis. Só querem as suas rotinazinhas tranquilas. Voltem pois para casa e mantenham-se a ver novelas.
Ass.: Besta Imunda
Manuel Maria Carrilho é um homem estupendo.
Desculpas pela minha ortografia manca e bárbara.
Ass.: Besta Imunda
..., infelizmente em vias de extinção
A cidadania consumista
prisioneira da escravidão,
como dinamismo prestamista
do bem-estar de qualquer cidadão.
Nas teias enganadoras
destes tempos enlaçados
lápides reveladoras
cobrem seres acossados.
Socialista, não obstante. Não é um bom cartão de visita no que toca à formulação e execução de políticas.
É um excelente texto, que tive muito gosto de ler - apesar de me posicionar muito à esquerda de quem o escreveu - principalmente por duas razões: mencionou a impotência da política à escala nacional (em todo o mundo) face ao capitalismo em queda livre, e refere o que pode ser contradito pelas sorrisos rasgados de quem nos apresenta o telejornal e diz diariamente que a crise passou: Estamos em decadência.
A meu ver, as conclusões de Carrilho desembocam inequivocamente numa conclusão: é tempo de reabilitar uma estratégia socialista internacional. Pena é que ele pertença a um partido invertebrado como o PS.
Enviar um comentário