11.5.05

DEIXA-ME RIR


A chamada vida material conduz-nos muitas vezes ao confronto com o absurdo. Em Setembro passado, por motivos profissionais, estive numa das mais deprimentes repartições de finanças de Lisboa, para os lados de Alvalade. Apesar dos esforços que empreendi, dentro das minhas limitadas possibilidades, presumo que os funcionários e os contribuintes continuam a ter que frequentar o mesmo local e nas mesmas condições de há nove meses. Desta vez calhou-me a repartição de Odivelas, uma "cidade afavelada" nos arredores de Lisboa. O dito "serviço público" encontra-se escondido num beco sem saída e com uma entrada que mais parece uma traseira de um armazém. Aliás, explicaram-me, ali esteve acomodada... uma fábrica de "pickles". Como se pode constatar, é, sem dúvida, o edifício mais adequado para pessoas trabalharem com papéis e com as "novas tecnologias de informação" (consegui escrever estas quatro palavras sem me rir) e para outras serem recebidas. Da acumulação de gente pelas escadas - aquilo possui dois ou três pisos - nem vale a pena falar. Das condições de atendimento e da privacidade desse atendimento, ainda menos. À semelhança do que acontecia em Alvalade, também em Odivelas o ambiente é insuportável, irrespirável e deprimente. O ar condicionado tipicamente não funciona. Nem sequer me preocupei em pedir o livro de reclamações. Não vale a pena. O Estado devia ser o primeiro a dar exemplos de cidadania. É quase sempre o último ou, quando muito, fá-lo nas piores condições. Eu há muito que desisti deste país e, por consequência, tendo a levar muito pouca coisa a sério e quase nada me impressiona. Contudo, acho lamentável que concidadãos meus, por dever de ofício, tenham que conviver diariamente com este inferno em pleno século XXI. A vida é demasiado curta para não ser vivida com qualidade. E a maior parte de nós passa grande parte dessa vida a trabalhar em circunstâncias deploráveis. Jamais estaremos perto - já não digo do norte da Europa para não ruborizar de vergonha - dos nossos parceiros comunitários. Em compensação e com exemplos destes, estamos bem mais próximos de um qualquer posto oficial do Marrocos profundo. Como escrevi na primeira ocasião, "só um "sentido de serviço" arrancado não sei bem a que profundezas das almas daquelas criaturas [dos funcionários] permite aguentar tamanho opróbrio". E questionei-me: "Sinceramente, é possível continuar com as bravatas demagógicas da "produtividade", da "melhoria de desempenho" e dos "indicadores" quando não se consegue instalar decentemente umas dezenas de pessoas nos respectivos postos de trabalho? Para quê continuar a acenar aos distraídos e aos ingénuos com a "reforma do Estado" se, numa coisa simples como ter um lugar equilibrado para trabalhar e atender gente, quase se sufoca todo o santo ano, ao ponto dos de fora lamentarem os de dentro? Isto é que é "modernizar a administração pública ao serviço dos cidadãos"? Ou os "cidadãos" que servem na administração pública são menos "cidadãos"? Este episódio da vida material é apenas mais um retrato da mesma miséria e da velha falácia". Prósperos? Modernos? Europeus? Civilizados? Deixa-me rir.

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