1. Está em curso, pelo menos com alguma persistência desde há três anos, uma interessante "ofensiva" contra a "administração pública", contra o "Estado" e, no topo do bolo, contra a "função pública". Parte do país fala destas entidades como se vivesse noutro país e como se, em momento algum, nunca tivesse tocado ou sido tocado por elas. Respeitáveis sibilas, ilustres governantes, maravilhosos jornalistas, lustrosos académicos, todos, todos sem excepção, dia sim, dia não, lançam o seu pedaço de gasolina para a fogueira. Até neste blogue se anda a "dissecar" o célebre "monstro" através de pequenos exemplos de desperdícios e de actos de gestão aparentemente incompreensíveis. Apesar da frivolidade do meu exercício, nunca perdi a noção do que é que estamos a falar quando falamos do Estado. O Estado é aquilo que nós, portugueses, somos e nós somos aquilo que o Estado é.
2. É, aliás, curioso- o termo é propositadamente benevolente - verificar como muitos dos que tanto criticam a "gordura" da administração pública, já por lá andaram a chafurdar ou dela receberam ou recebem ainda a sua fatia. Quando se fala em "função pública", aquilo a que o Estado Novo chamava de "servidores", não se pode perder de vista o que é que lá cabe. Do corpo diplomático ao coveiro municipal, das magistraturas ao escriturário, dos médicos aos "técnicos de limpeza", dos professores aos contínuos, dos conservadores de museus aos técnicos tributários, dos catedráticos aos investigadores, dos motoristas aos corpos policiais, todos "servem" o Estado e por ele são pagos. Trabalham melhor ou pior? Estão bem ou mal distribuídos? São muitos ou são poucos? É mais ou menos equitativa a organização interna e a remuneração respectiva? São geridos correctamente? Para responder a estas questões, existem tutelas políticas, directores-gerais e chefias intermédias. E centena de presidentes de câmaras municipais, nunca se esqueçam deles. Em suma, uma "hierarquia" cuja competência e sentido de responsabilidade deviam ser permanentemente escrutinados. Tenho, no entanto, imensas dúvidas que o sejam.
3. Há, naturalmente, uma quantidade razoável de felizardos que podem acumular o que recebem do "monstro" com as suas actividadezinhas privadas. Dispenso-me de enumerar, basta exemplificar: juristas que exercem advocacia ou consultadoria, economistas que são revisores oficiais ou técnicos de contas, professores que dão aulas em estabelecimentos privados de ensino, escrevem nos jornais (eu também escrevo, mas é "de borla") e "comentam" na televisão, normalmente "contra" o Estado, polícias que são seguranças privados nas horas vagas, médicos e enfermeiros que repartem o seu tempo pelo SNS e pela "privada" e por aí fora. Ou seja, juntando os "funcionários" todos, os respectivos agregados familiares e as suas "ligações" mais ou menos perigosas, constata-se que quase toda a gente já foi "invadida" pelo Estado ou está à espera do o poder "invadir".
4. Veja-se o caso dos chamados grandes grupos económicos e financeiros. Na primeira oportunidade facultada por um governante amigo, também se aproveitam. A "sociedade civil" de onde eles emergem, bem como o glorioso "tecido empresarial português", raramente passam de uma ficção encenada a preceito para esconder a falta de imaginação e a subsídio-dependência. Esta gente passa o tempo na lamúria, em "colóquios" e a escrever cartinhas à "administração pública" a pedir coisas. Num país onde as "estruturas produtivas" são a miséria que se conhece, o Estado é fatalmente omnipresente.
5. Hipocrita e secretamente, todos suspiram para que assim seja e para que assim continue a ser. Por tudo isto, este clima de "guerra civil" que anda a ser alimentado por protagonistas de diversas proveniências, pode vir a ter consequências desastrosas para o equilíbrio democrático da sociedade portuguesa. Muito do eleitorado que vai efectivamente votar, é filho dilecto ou bastardo do Estado. Em menos de quatro anos, esse eleitorado já quis tudo e o seu contrário. É ele, afinal, quem verdadeiramente decide o que é "a bem da Nação".
Sem comentários:
Enviar um comentário