15.1.04

IRONIAS E CANSAÇOS

Um. Vinha no meu carro a ouvir o ministro da Saúde defender os aumentos proporcionados aos gestores dos hospitais SA, em pecúlio e em cartão de crédito, ao que parece. A argumentação do senhor pode servir, por exemplo, para os funcionários do Estado com responsabilidades de "gestão" ( e não só), os tais que acima de mil euros continuam a não "ver o padeiro" em 2004. Tudo, disse, devidamente autorizado pelas austeras "Finanças". Finalmente começa a entender-se o alcance deste "Portugal SA" ( o "anónimo das denúncias, e o anónimo dos "interesses" ), generosamente subsidiado com o dinheiro dos contribuintes tansos, os que declaram e pagam, naturalmente. A moda segue para os teatros nacionais. E na Cultura, como se previa, anunciam-se as habituais cativações orçamentais em PIDDAC e provavelmente em "funcionamento" , enquanto um ou outro dirigente já sonha com a sua "SA" de estimação. Agora, porém, aguentem-se e aturem-se uns aos outros nos assuntos de "mercearia". Eu "dei para o peditório" e sei do que falo. É bem feito. Estão muito bem uns para os outros. Dois. Outro dia, entre Paulo Portas e António Calvário, Santana Lopes anunciou ao mundo "um tempo novo", seguramente protagonizado por ele. Tratava-se de um mero lançamento de um livro menor, mas assistiram um primeiro-ministro e um ministro de Estado, no meio de uns quantos ornamentos do regime, eminentemente esquecíveis. Não, não foi em nenhum país africano ou que tivesse descoberto recentemente os efeitos perversos da democracia. Foi mesmo aqui, entre nós, no quentinho do Grémio Literário, ao Chiado, em Lisboa, Janeiro de 2004. Três. José Régio, de quem não gosto particularmente, tem umas quantas poesias aproveitáveis e dois livrinhos interessantes, Davam grandes passeios aos domingos e O vestido cor de fogo. No meio deste arrivismo delirante e desta "insustentável leveza" que se anda a espalhar por aí como uma praga, lembrei-me do seu Cântigo Negro, e olho para isto tudo com uma imensa ironia (preocupada) e um enorme cansaço (irritado). O que é preciso é um tempo de malditos, de saudáveis malditos.



"Vem por aqui" --- dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
--- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
Sei que não vou por aí.

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