1. Tendo pela frente os rostos patibulares dos senhores que administram a justiça neste País, o poder político legitimamente sufragado nas urnas foi dizer como acha que as coisas, justamente na justiça, se devem passar. Aos ditos senhores, os que estavam acordados, deve-lhes ter entrado por um ouvido e saído por outro. A imagem da justiça tem tudo a ver com aqueles facies inexpressivos, quase etéreos e geralmente alheios à vida vivida no quotidiano das pessoas vulgares. O Dr. Sampaio quer controlo judicial sobre determinados actos do Ministério Público (boa ideia!), o Dr. Barroso, promete "reformas" e o Dr. Júdice, da "câmara corporativa", exige-as. Aliás, o primeiro-ministro referiu há dias que a Justiça estava a passar por uma "revolução tranquila" que, de tão tranquila, como a sua sorridente titular, nem se dá por ela. Voltemos, porém, aos "administradores da justiça". Se há coisa que o nosso País tem a mais é juristas. É um curso que dá para quase tudo, e até pela negativa, como se viu nas recentes admissões ao curso de magistrados do CEJ. Para além disso, por detrás de cada gestor político, existe sempre um legislador impaciente e putativo. Todos gostam de deixar a sua "marca" e nada melhor do que um "diploma legal", a juntar aos muitos que servem para muito pouco, que ninguém lê e que ninguém cumpre. Por causa da "mediatização" de determinados processos, a justiça anda na rua. Vai ser "julgada" na rua, aliás, e muito por sua culpa. Talvez fosse mais útil aos seus "operadores" lerem Michel Foucault ou Gilles Deleuze do que marrar nas sebentas sofríveis dos nossos doutrinadores domésticos, ou aplicar cegamente códigos ou proclamar reformas que banalizam o conceito e a mensagem. A justiça desceu da barra do tribunal para a praça, para os jornais, para as televisões, para o abismo. Não está mais onde devia estar, nem se sabe quando e se voltará a estar. O exemplo disto está nas palavras do Procurador Geral da República, cujo discurso se centrou "num" processo concreto. O escândalo absorveu a justiça e, daqui em diante, é ele quem a vai absolver ou danar.
2. Diz Deleuze:
A jurisprudência é a filosofia do direito, e procede por singularidade, prolongamento de singularidades. Evidentemente, tudo isto pode dar lugar a tomadas de posição se se tiver alguma coisa a dizer. Mas hoje não basta "tomar posição", ainda que concretamente. Seria necessário um mínimo de controlo sobre os meios de expressão. Caso contrário, rapidamente daremos por nós na televisão a responder a perguntas idiotas, ou num frente-a-frente, num costas-a-costas, a "discutir um pouco". Participar, portanto, na produção da emissão? É difícl, é uma actividade profissional, já não somos nós os clientes sequer da televisão, os verdadeiros clientes são os anunciantes, os famosos liberais.
(in Conversações (1972-1990), trad. de Miguel Serras Pereira, Ed. Fim de Século, 2003)
Michel Foucault
e Gilles Deleuze
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