18.1.04

A CONSOLAÇÃO DA FILOSOFIA

Descobri Maria Filomena Molder, na década de oitenta, num seu ensaio acerca de Jorge Martins ( Imprensa Nacional-Casa da Moeda ). Mais recentemente, "encontrei-a" num livro sobre Walter Benjamin, Semear na Neve ( Relógio D' Água ). A propósito da publicação de um novo livro, A Imperfeição da Filosofia, desta última editora, Helena Vasconcelos proporcionou uma notável entrevista com Filomena Molder no suplemento Mil Folhas do Público , de 17 de Janeiro. É reconfortante - deveria antes dizer inquietante, no melhor do seu sentido - o confronto com as palavras luminosas de Maria Filomena Molder. É uma vez mais no "consolo" da filosofia que apetece continuar depois de a ler. No meio de tanto lixo que nos entra pela porta através de tanta folha inútil de jornal, no meio da insuportável ignorância tagarela em vigor, esta serenidade perturbante é como que um bálsamo. Como tudo é efémero, desde as páginas web dos jornais até à própria utilização da linguagem, troco o habitual link pela reprodução integral desta inteligente entrevista, com a vénia costumeira a Helena Vasconcelos, directora da revista online Storm Magazine.

Um Brilho sem vacilações

Por Helena Vasconcelos

Maria Filomena Molder, filósofa, professora e escritora reúne em "A Imperfeição da Filosofia" (Ed. Relógio D'Água, Novembro, 2003) textos que exploram o universo do pensamento e seduzem pela sua extrema limpidez, aliada a uma enorme erudição. Filósofos - dos Clássicos aos que marcaram o século XX como Wittgenstein e Walter Benjamin - escritores e poetas - como por exemplo, Dante, Jorge de Sena e Rilke - pintores, fotógrafos, cineastas (como David Lynch) chegam-nos "revigorados" por esta voz que, ainda que meditativa , tem a capacidade de nos atingir em pleno e de nos estimular.

Maria Filomena Molder iniciou a sua fulgurante trajectória como docente do Departamento de Filosofia da Universidade Nova em 1980, onde lhe foi atribuída a cadeira de Filosofia Medieval. Dessa experiência ficou-lhe o interesse por Santo Agostinho, Santo Anselmo e outros doutores da Igreja com quem mantém vivo contacto, apesar de os seus interesses terem continuado a expandir-se, principalmente em campos tão férteis como a Estética e a Filosofia da Linguagem. Desta autora, é possível encontrar na mesma editora a obra "Semear na Neve".


Mil FOLHAS - Como se tem desencadeado o seu percurso de professora de Filosofia Medieval até esta "abertura" para a Estética e para a Filosofia da Linguagem?

Maria Filomena Molder - Na verdade, não estava preparada para ensinar filosofia medieval, no sentido de já ter levado a cabo uma longa e exaustiva investigação. Mas foi a cadeira que me foi distribuída quando, em 1980, entrei para o Departamento de Filosofia da Universidade Nova, precisamente no seu segundo ano de existência, e me dediquei inteiramente ao seu estudo durante os dois breves anos em que a leccionei. No entanto, desde os meus tempos da Faculdade de Letras que alguns dos autores medievais e dos seus problemas me tinham afectado profundamente (e evoco aqui o Padre de Cerqueira, meu professor de Medieval). Exemplifico: Santo Agostinho e o mistério do tempo e da memória, o modo original de conceber a linguagem, o modo de citar (que tomei como regra íntima) - quanto mais próximo de nós está um texto, menos a citação aparece como uma citação, ficando, por assim dizer, incorporada nas nossas palavras; Santo Anselmo e a sua delirante prova ontológica, que tantas voltas nos dá à cabeça, uma autêntica mina para exploração das relações entre o possível, o real e o pensável; o problema dos universais (a Arca de Noé é uma das suas apresentações mais antigas), que vem ter connosco sempre que tentamos distinguir um gato de um cão ou de saber qual é a diferença entre a arte e uma obra de arte. Além destes, tive a oportunidade de voltar a estudar durante esses dois anos um autor, que é como o último dos Gregos, Plotino, aquele que já não se vê propriamente como filósofo, e se atribuiu apenas o papel de intérprete, e que para as coisas da Estética (que é uma palavra tão recente!) se revelou um autêntico manancial, sobretudo para a compreensão da relação entre forma e informe e para a visão do universo como o acto de um dançarino.

P.- Acha que a sua base "medievalista" a preparou para o desenvolver do seu pensamento ou precisou de fazer um "corte" , voltando às raízes clássicas da nossa cultura?

R.- Releio sempre Plotino, que não é um pensador medieval, mas foi tão lido directa ou indirectamente pelos medievais, e regresso muitas vezes aos abismos agostinianos: ao imenso palácio da memória, ao labirinto do tempo (não só o famoso "se não mo perguntam sei o que é, se mo perguntam não sei o que é", mas também o surpreendente, o admirável, resultado - é que ele acaba mesmo por nos esclarecer em que consiste o tempo: uma distensão da alma). E, recentemente, por obrigações de distribuição de serviço, voltei à filosofia medieval, mas agora, e mantendo-se a minha impreparação nos termos referidos, decidi-me a ler com os estudantes "A Divina Comédia", na qual encontrei tudo o que esperava encontrar, mais tudo o resto: o "absoluto que pertence à terra", que sendo um leit-motiv de Broch, não se podia aplicar melhor a Dante - ele chamava-lhe liberdade; as relações entre poesia e filosofia, entre sonho, visão e poesia; a visão infernal do tempo; uma das compreensões mais temíveis do suicídio; o carácter desmedido, insolente, da poesia; uma metafísica da luz... Na verdade, encontra-se tudo n' "A Divina Comédia"! Levou-me a reler, por exemplo, o tratado sobre os anjos de São Tomás de Aquino. Acrescente-se que o melhor guia para "A Divina Comédia", poema que não poderia ser mais medieval e continua a resistir a qualquer esforço de classificação, é o poeta russo Óssip Mandelstam.

P.- O seu trabalho tem vindo a desenvolver-se de uma forma segura e revigorante. Como chegou a esta íntima conexão do pensamento filosófico com a literatura, a fotografia, o cinema, a ciência e as artes plásticas?

R.- Gostaria de lembrar que se pode fazer filosofia (aliás, o mesmo se passa com a arte) a partir do que quer que seja (embora não se faça de qualquer maneira, como também acontece com a arte), e sempre se fez. O primeiro crítico sistemático da poesia foi Platão, e o seu primeiro defensor, Aristóteles, que ainda sabia (e aqui ele já citava o dificílimo Heraclito) que em todos os lugares pode haver deuses ou, usando as palavras de Colli, o primeiro dever do filósofo é não caluniar as aparências. Desde pequena que não posso viver sem música e sem cinema. Descobri na adolescência a poesia, as outras artes.

P.- Fala de Sócrates e do seu pedido para que seja aceite a "natureza incompleta da filosofia". Em relação ao título deste seu livro - "A Imperfeição da Filosofia" - será que está a reportar-se às palavras do filósofo ? Ao debruçar-se sobre essa "imperfeição" quer dizer que a sabedoria implícita no termo Filosofia não é completa e que em vez de "consolo" traz a inquietação inerente à descoberta continuada?

R.- Reli Boécio e a sua "A Consolação da Filosofia" - uma obra escrita na prisão de Ticinium em 524 ou 525, antes de ele ser executado - por causa do Dante. É um admirável esforço de se libertar do desespero, da desilusão, do medo da morte e do desprezo pela morte desonrosa. Nessa obra, vemos pela última vez brilhar sem vacilações a relação entre filosofia e modo de vida ou, melhor, a filosofia entendida como modo de vida, coisa que os Modernos tenderam a ocultar de forma mais ou menos eficaz. No meio da devastação, há quem jogue ao xadrez. Que a filosofia providencie a consolação tem alguma parecença com o jogo: suspende-se a relação com a imediatez, abre-se uma pequena fenda e tenta-se respirar melhor. Por seu lado, a imperfeição tem a ver com incompletude, um sentimento de perda, e com agilidade, leveza, tentar não cair como o acrobata. Isto é, a filosofia traz realmente inquietação e só atravessando essa parede ardente podemos chegar a vislumbrar que ela rima com "descoberta continuada".

P.- Refere o suicídio no contexto a que a ele se referiu Camus que disse: "Só há um problema filosófico realmente sério: o suicídio."?

R.- Não me sinto capaz de falar do suicídio a não ser por interposta pessoa. N' "A Divina Comédia", Dante dá-nos a ver duas inexcedíveis aproximações, ambas perturbadoras. Num dos círculos do Inferno, numa vastidão hostil, crescem umas estranhas árvores, em cujos ramos retorcidos em vez de seiva corre sangue humano. Com crueldade involuntária, Dante parte um desses ramos e ouve uns lamentosos gritos de dor. Sem o saber, acaba de mutilar um suicida, por quem ele tem grande admiração e sente piedade, Piero della Vigna, homem de espírito nobre, acusado injustamente de traição. O suicida aos olhos da crença cristã é um escândalo, pois é um gesto de rebelião contra a vontade criadora de Deus, através da rejeição de si próprio, do seu corpo próprio. E, por isso, o suicida é aquele que jamais poderá resgatar o seu corpo, perdeu o direito a ele, quer dizer, o mistério da ressurreição foi por ele absolutamente selado. A outra aproximação encontramo-la à entrada do Purgatório, guardada por alguém que não é só um pagão, mas também um suicida, Catão. Mas, aqui, que a morte própria tenha origem no amor pela liberdade é um excesso bem-vindo aos olhos de Dante. Mais perto de nós, e próximo de Camus, temos o testemunho de Jean Améry.

P.- No seu texto sobre Rilke fala da "atmosfera da civilização", essas sucessivas "crostas" criadas pelo ser humano, que nos isolam de Deus. Será que, como diz Steiner, a religião poderia ser definida como uma resposta narrativa à interrogação de Leibnitz: "Por que há alguma coisa em vez de nada?"?

R.- Que a civilização seja constituída por uma sobreposição de crostas que nos separariam de Deus é uma ideia wittgensteiniana, ou melhor, é a devolução por Wittgenstein de um lugar- comum de muitas culturas, incluindo a ocidental, qualquer que seja a sua formulação, e isto desde que nós nos podemos lembrar. Esse lugar comum exprime o sentimento de perda de um contacto íntimo com o mistério da vida, do ser, de deus ou dos deuses, e obriga muitas vezes a procedimentos mais ou menos austeros de desprendimento e ascetismo, que atravessam a religião, a filosofia, a arte: voltar a conhecer a simplicidade do coração, voltar a beber a água pura das fontes. O que é uma maneira de reconhecer um grau de inadaptação "quantum satis" do ser humano à sua própria história. A pergunta pelo nada, a pergunta de Leibniz (retomada de maneira particular por Heidegger, do qual Steiner é um grande leitor), é a pergunta que não se refaz nunca do mistério de haver isto tudo que há, e conheceu respostas antes de a filosofia as ter formalizado. A descrição do Génesis é uma dessas respostas, que protege, como um tesouro ou um escândalo incomunicável, o porquê. Num dos mais belos hinos védicos, isso, que não pode deixar de ser ocultado, é apontado assim: pode ser que aquele que sustenta tudo saiba o porquê desta existência secundária (que inclui os homens e os deuses), mas também pode acontecer que esse também não saiba.

P.- Diz que a "imoderação própria da actividade filosófica tem a ver com a natureza do amor".Parece uma referência a uma espécie de movimentação física arrebatadora como o sexo. Será que se refere a Eros e à nossa mortalidade?

R.- Há uma embriaguez própria do acto contemplativo, no sentido em que a suspensão da vida a que ele obriga pode levar a um comprazimento solipsista, mas esse estar consigo próprio também pode originar formas mais ou menos agudas de dilaceração. Como muito bem diz a imoderação a que me refiro, atribuindo-a à natureza do amor, tem a ver com o deus Eros, essa força física, cósmica, que faz mover tudo e, em particular esses que tentam decifrar os discursos escritos nas suas própria almas, e, portanto, apresenta-se como um desafio à nossa mortalidade. É no "Fedro" que Platão descobre esse chamamento, que permita vencer a tentação (e a ilusão) solipsista, e toma formas paradoxais. No caso do discurso de Aristófanes, encontramos esta pergunta: os amantes não procuram outra coisa a não ser estarem juntos, que querem eles? No caso do discurso de Diotima, que se faz ouvir pela voz de Sócrates, no termo da descrição da escala de graus da experiência erótica, surpreendemos a alma a deixar cair tudo o que parecia decisivo: a figura, o saber, o logos, de modo a poder despenhar-se no pélago, no mar do desejo.

P.- A linguagem utilizada na sua escrita é muito próxima da Poesia e, em muitos aspectos possui uma espécie de esplendor da visualização cinematográfica e/ou fotográfica. Aliás, a sua íntima ligação com essas duas linguagens é bem explícita. Como distingue o olhar sobre a pintura, a fotografia, o cinema e o olhar focado na palavra e no pensamento?

R.- Há quem tenha, e de modo excelente (em particular os poetas e os artistas), encontrado grandes afinidades entre a palavra e a pintura. Mas, na verdade, trata-se mais da aproximação entre escrita e pintura do que da relação entre palavra e pintura. O pensamento dá-se bem com a palavra. Não me encontro entre aqueles para quem as palavras não chegam e, em contrapartida, estão convencidos de que há outras coisas que chegam. A palavra nasce na nossa boca, um dos lugares íntimos do nosso corpo, e, ao mesmo tempo, solta-se, expandindo-se, criando correntes de energia, e, como se não bastasse, é imediatamente um esforço compreensivo e expressivo. Ao contrário do que acontece com as mãos, instrumentos de realização, à voz humana, paradoxalmente, porque não podia ser-nos mais íntima, é atribuído um estatuto de mediação, que certamente provém da sua vocação conceptual, a palavra engana, louva, fere, mata, calcula. Quer dizer, a palavra não se mistura com aquilo de que fala, as palavras não são coisas. As artes passam adiante dessa separação entre o que há e o nosso dizer, há um elemento nelas que resiste definitivamente ao poder do logos (o que também sucede na poesia, mas com contornos únicos: a palavra resiste à palavra, e aí a música faz uma das suas aparições), que é o poder de irem ter directamente com as coisas, de se colocarem ao lado delas. Não sendo um prolongamento do corpo, as artes fazem parte do reino dos corpos, e qualificam directamente o espaço (aqui a arquitectura toma a dianteira). A escrita, em parte, também conhece estas determinações, daí a relação com as artes, mas há uma parte da escrita que não pertence ao espaço, que procede do som e do espírito da voz. Acho que não respondi inteiramente à sua pergunta. Mas sugiro-lhe que fiquemos por aqui.

P.- Os problemas da linguagem atravessam a sua obra. Vivemos em tempos babélicos? Ou, pelo contrário, estamos já num pós-Babel? Será que a palavra se transformou em ruído, que vivemos enclausurados neste "mortal coil" [invólucro mortal] onde ecoa o "shuffle" [tumulto] de que fala Shakespeare em "Hamlet"?

R.- Dá muito que pensar que na "Epopeia de Gilgamesh", onde existe a primeira referência ao grande Dilúvio, destruidor de toda a vida (a que só escapou um ser humano, o primeiro versão de Noé), tenha sido decidido pelos deuses, pela razão simples e suficiente de já não poderem suportar o ruído que os homens faziam. A Torre de Babel é um lugar de atracção atormentada e um lugar que originou muitos lamentos, em que se misturam a confusão das línguas, a mudez e a surdez, o ruído. De tempos a tempos o projecto da Torre retorna. Mas o momento em que Babel fosse resgatada, e o coração humano não conhecesse essa desmedida (talvez um outro nome para a pedra sacrílega que Nietzsche diz estar à porta de qualquer civilização), não seria o dia da vitória sobre a multiplicidade das línguas. Vejo-o mais como equivalente ao dia de Pentecostes: cada um falaria na sua própria língua e todos seriam capazes de entender.

P.- De que é que nós, os seres humanos, temos medo? Do vazio? Do Nada?

R.- Gostaria de lembrar que o primeiro texto literário conhecido, escrito na Suméria centenas de anos antes da "Ilíada" e da "Odisseia", a "Epopeia de Gilgamesh"(que é por um lado o nome da personagem e o próprio autor), concentra-se em volta de duas experiências, que se podem abater sobre qualquer um de nós separadamente, mas que no poema são simultâneas: cair em si e descobrir o medo da morte pelo escândalo da morte alheia, a daquele que se ama. Devido a essas descobertas, acompanhadas por sentimentos insuportáveis de terror e de perda, Gilgamesh empreende uma viagem à procura da imortalidade. No termo da viagem, depois de ter falhado todas as tentativas de o conseguir (e que se resumem, por um lado, à impossibilidade de dominar o tempo e, por outro, à incapacidade de se metamorfosear até ao fim), o príncipe Gilgamesh regressa à sua cidade de Uruk, senta-se à beira das suas muralhas e escreve num poema tudo aquilo por que passou. Quer dizer, aquele que procurou desesperadamente, e em vão, por uma imortalidade incomportável, acaba de surpreender uma outra forma de imortalidade, a única que nos convém: imprimir sinais em tabuinhas de barro, contar uma história. Mesmo presentes, os deuses não atravessam sempre essa história, sobretudo quando o que está em causa é contar a alguém aquilo que aconteceu, uma prerrogativa humana. É aí que se engendram o poder da memória, o dever da transmissão e a tarefa de rememorar. Por outro lado, se nós conseguimos imaginar a corrupção do nosso corpo, o nosso tornar-se cadáver, já não somos capazes de modo nenhum de antecipar a irrealidade do nosso pensamento, quer dizer, a imaginação sem a condição do espaço emudece e paralisa. Isso é fonte de grande angústia.

P.- No ensaio que dá o título ao livro fala de Platão e do seu "projecto de uma arte de escrita" que escapasse ao "destino" da maior parte dos textos: ou serem uma "fonte de equívocos", encantando os leitores com falácias - domínio do romance, da ficção a que tanto quis fugir Daniel Defoe; ou serem um instrumento mais ou menos imposto ao leitor quando se entra nos domínios da retórica, da política ou da pedagogia. Essa "arte de escrita", do domínio filosófico, ganha em liberdade, permitindo uma espécie de "desprendimento" e de alastramento nos vários campos da experiência e do saber que parece ser do seu agrado. Concorda?

R.- Nessas hipóteses interpretativas, acerca do que a escrita filosófica não é, fazem-se ouvir as palavras de Platão sobre o assunto: a escrita é sempre enganadora ou porque encanta ou porque persuade e, em qualquer dos casos, em geral, a escrita é impotente, muda e incapaz de se defender. E ele, no "Fedro", tenta a introdução do único gesto que poderia diminuir essa impotência, justamente um projecto de escrita filosófica ou uma arte da escrita, em que aquele que escreve adverte aquele que lê contra os perigos em que está aquele que escreve, contra a petrificação, a esclerose, a mudez do efeito retórico. Gosto muito dessa expressão: "uma espécie de 'desprendimento'", que é ao mesmo tempo reserva, poder juntar um tesouro, e liberdade de seguir em qualquer lado, e em qualquer coisa, os vestígios daquilo que se procura.

P.- Alain de Botton - que escreveu "As Consolações da Filosofia" - diz que os seres humanos têm seis "gurus" para seis preocupações universais: Sócrates e a impopularidade; Epicuro e a falta de dinheiro; Séneca e o estado de frustração; Montaigne e a imperfeição; Schopenhauer e desgosto, Nietzsche e a necessidade da dificuldade. É uma espécie de "filosofia, modo de usar". Que autores escolheria - estes ou outros - como "pilares" a que podemos sempre recorrer?

R.- Não há experiência mais gratificante do que o reconhecimento da grandeza de alguém, mas essa experiência contém uma ameaça, a de se ser aniquilado. Para escaparmos a essa ameaça, é preciso que transformemos o reconhecimento da grandeza alheia em sentimento de veneração. Não se pode começar a pensar verdadeiramente sem essa forma de iniciação, que implica olhar para trás, conservar as cinzas, pagar as suas dívidas, provar a si próprio que não se é mais indigno do que aqueles que nós desprezamos. Estas palavras não poderiam ter sido escritas por mim, sem Goethe, Baudelaire, Benjamin e Montaigne. Mas ainda falta falar de Heraclito, Platão, Aristóteles, Plotino, Kant, Nietzsche, Wittgenstein, Broch, Colli. É evidente que a série está incompleta.

P.- Os seus livros possuem a inefável qualidade de poderem ser lidos sem uma preparação puramente filosófica. [Será que deseja fazer da prática do pensamento um instrumento vivencial, como em tempos idos era a leitura da Bíblia?] Aquilo a que chamou a "descoberta continuada" poderá estar ao alcance de (quase) todos?

R.- "Os limites da alma nunca os conhecerás", terá dito Heraclito por meio de um dos seus transmissores, o que é uma bela maneira de se contrapor à advertência socrática sobre os limites, o célebre "conhece-te a ti mesmo!". Ele que era e foi conhecido pelo seu desprezo indefectível pela multidão dos homens e pelas suas variadas formas de cegueira e embuste, não pôde evitar uma declaração de comunidade, que é, ao mesmo tempo, uma prova de confiança na possibilidade de nos decifrarmos a nós próprios: "A todos os homens pode caber a sorte de se reconhecerem a si mesmos e de sentirem a imediatez (o mais íntimo, o frémito da vida)"



Walter Benjamin

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