1.10.06

ALGUMA COISA


O Pedro Correia, porventura aproveitando a modorra outonal que se avizinha, elencou "os livros da vida dele" e lembrou-se de um belo conto de Hemingway, passado em Itália. Eu hesito sempre nos primeiros. Houve autores e livros por que passei que achei "definitivos" e que, anos depois, esqueci. E também aconteceu o contrário. Livros por que passei com displicência e que vieram a tornar-se permanentes companheiros. O que vou enunciar não pertence a nenhuma das duas categorias. Trata-se de um "conto" de Tennessee Williams, publicado naquela maravilhosa "Colecção Miniatura" dos "Livros do Brasil", sob o título "A Última Primavera" (tradução de José Sasportes - o mesmo que foi ministro da Cultura de Guterres - no original, "The Roman Spring of Mrs. Stone"). É, como praticamente tudo o que Tennessee escreveu, autobiográfico, apesar da Mrs. Stone. Trata-se da história de uma actriz norte-americana, em fim de carreira, viúva e rica, que em Roma, "arrastada pela torrente", se apaixona por um gigolo, Paolo. Os "desenvolvimentos" são os habituais nestas coisas, até ao momento em que Mrs. Stone percebe que não é mais possível "manter a dignidade". Como se houvesse "dignidade" a manter quando somos arrastados pela "torrente". Perto do final, numa discussão com Paolo, este pergunta a Mrs. Stone: "Roma tem três milhares de anos, e tu quantos tens? - Cinquenta! - disse ela a custo. Foi esta palavra que acabou com o seu sofrimento". Já num momento anterior, depois de Paolo lhe recordar que "não era a primeira grande dama com quem andava", Mrs. Stone respondeu: "Tens razão, Paolo, - disse a sr.ª Stone, enquanto esperavam que o porteiro os fizesse entrar - não é um assunto digno, e eu acho que a pior coisa que pode haver no amor entre uma pessoa muito nova e outra relativamente mais velha é a terrível falta de dignidade que parece exigir..." O conto termina com Mrs. Stone, imersa em álcool e em solidão na balaustrada no seu palazzo romano, a embrulhar as chaves da casa num lenço branco com que antes acenara a "outro" Paolo anónimo que esperava um sinal na rua para poder subir. Tennessee escreve: "Desaparecia, não, já tinha desaparecido sob a cornija por cima da porta do palazzo, e dentro de instantes, daqui a poucos minutos, o nada acabaria, o vácuo terrível seria devassado por alguma coisa". Se alguém sabia em que consistia esse "vácuo terrível", era Tennessee Williams que, depois da morte por cancro do seu companheiro Frank Merlo, em 1962, "morreu um pouco também" (Truman Capote, I remember Tennessee, 1983). Depois disto - continua Capote - "Tennessee não foi mais o mesmo. Bebera sempre bastante, mas aí começou a misturar comprimidos com o álccol [como, aliás, o próprio Capote, desaparecido um ano depois deste ensaio ter sido escrito]. Dava-se também com uma gente muito estranha. Creio que passou sozinho os derradeiros vinte anos da sua vida - com o fantasma de Frank". Não terá sido exactamente assim. Como a Mrs. Stone do seu conto, Tennessee passou esses anos na balaustrada à espera que o seu nada fosse "devassado por alguma coisa".

4 comentários:

Anónimo disse...

Excelente, caro João!

Anónimo disse...

De Tennesse Williams o que me vem à memória é de "Um Electrico Chamado Desejo" na Comuna, com uma interpretação magistral de Manuela e Freitas.
... por onde andará ela?

Pedro Correia disse...

Não conheço, João. Esse deve ser um dos raros livros da Miniatura que não tenho. Não vi sequer o filme, com a Vivien Leigh. O Tennessee que conheço como contista, ao contrário do Tennessee dramaturgo, nunca me deslumbrou. Ao contrário do Capote, que também fará parte da série no Corta-Fitas. Abraço.

Anónimo disse...

“Since I am a member of the human race, when I attack its behavior toward fellow members I am obviously including myself in the attack, unless I regard myself as not human but superior to
humanity. I don’t. In fact, I can’t expose a human weakness on stage unless I know it through having it myself. I have exposed a good many human weaknesses and brutalities and consequently I have them. I don’t even think that I am more conscious of mine than any of you are of yours. Guilt is universal. I mean a strong sense of guilt. If there exists any area in which a man can rise above his moral condition, imposed upon him at birth, and long before birth, by the nature of his breed, then I think it is only a willingness to know it, to face its existence in him, and I think that, at least below the conscious level, we all face it. Hence guilty feelings, and hence defiant aggressions, and hence the deep dark of despair that haunts our dreams, our creative work, and makes us distrust each other”.

Tennessee Williams (1959)