28.6.06

COISAS DE VELHOS


1. O post anterior suscitou alguns comentários interessantes. Pena é que haja autores que se escondem por detrás do anonimato e de uma igualmente interessante "teoria científica". Convido-os, desde já, e para além dos comentários que vão deixando, a produzir prosa identificada que possa ser convertida em posts. Todavia, não é por isso que deixo de fazer algumas observações.
2. A primeira - a mais óbvia e da qual deriva tudo o mais - prende-se ao motivo do post, um livro. Sem que o livro seja lido e entendido, não saímos destes jogos florais. Insisto. O autor, Simon Goldhill, propôe-nos o seguinte: tentar perceber em que medida a cultura clássica está presente no nosso quotidiano político - a democracia-, de costumes, religioso, social, etc. Para o fazer, Goldhill, um especialista em Grego, explica, entre outras coisas, os padrões de comportamento cívico dos "antigos" e, nisto, inclui-se a atitude dos mesmos perante as "afinidades electivas" e sexuais. Falamos de sociedades - na pratica e exclusivamente - de natureza patriarcal, nas quais a amizade viril e a cumplicidade intelectual - a dos "cidadãos" entre si, e destes com os mancebos destinados a ser mais tarde, também eles, "cidadãos" - são dados essenciais para entender aquilo a que o tradutor chama de classicismo (literalmente, Goldhill, em epígrafe, titula "como é que o mundo antigo molda as nossas vidas") . Por outro lado, o autor discute, à luz dessa "vida em ruínas", a respectiva projecção no dia-a-dia, pelo menos, do "homem ocidental". Heidegger, aliás, insistia na etimologia da palavra "ocidente" - a terra do Ocaso, do declínio do ser - e, ao lermos Goldhill, percebemos porquê.
3. Mais. O facto de, por uma forma relativamente generalizada, se impôr - impormos - um "padrão" normativo aos comportamentos sexuais, a partir da classificação "hetero" e "homo" inventada por volta de 1870 na Alemanha, não significa que ele exista realmente. A tese respeitável do "hipotálamo", por exemplo, não explica por que é que soit disant "homossexuais" praticam sexo com pessoas de sexo diferente quando lhes dá na telha, e em fases completamente distintas do "crescimento", ou por que ditos "heterossexuais" o fazem de igual modo com pessoas do seu sexo. Por consequência, Goldhill interroga-se sobre se fará algum sentido falar de "natural" nestas matérias, deixando um mote sugestivo: "limita-te a fazer o que acontece naturalmente".
4. A frase de Aristóteles, lida à luz da "normalidade", seria uma aberração porque vivemos numa era em que a troca de galhardetes "românticos" - evidenciada nos "discursos" do "dia dos namorados", nas falas dos filmes, das televisões e dos "romances cor-de-rosa" - é uma componente indispensável do transporte "amoroso". Todavia, nada disso se encontra nas grandes tragédias clássicas ou nas epopeias de Homero. Penélope e Ulisses "omitem" o desejo que sentem um pelo outro - Ulisses "alivia-se" pelo caminho com outras o os que desejam Penélope estão condenados -, mas nem por isso deixam de ser marido e mulher para todos os efeitos, incluindo o sexual. E Páris arruina-se por causa do desejo que sentia por Helena. Isto é, Homero afirma, através dos seus heróis masculinos e femininos, que o desejo é perigoso para os primeiros e sintoma de corrupção para as segundas. Na antiguidade existe uma hierarquia na qual está vedado ao homem ser desejado, nem sequer pela esposa. Não existe reciprocidade, apenas supremacia, sob pena de pública expiação nos simpósios ou nos ginásios. Até a poetisa Safo, exilada em Lesbos, e que se atreveu a dar forma de letra ao seu desejo por mulheres, foi amplamente apoucada por esse facto. E na relação homem-mancebo, a dependência também é total. O arquétipo grego de beleza ignora ostensivamente a mulher sobre a qual o homem tem total poder, da mesma maneira que o tem sobre os seus desejos, sobre a sua casa, sobre os seus filhos e sobre os seus "rapazes".
5. Como escreve Goldhill:
"A cidade clássica está constantemente a lembrar-nos que o idoso casal junto ao chalé coberto de rosas não é o desfecho natural de uma história de amor, por mais que continue a predominar na cultura ocidental contemporânea. A aceitação e promoção por parte dos antigos da falta de reciprocidade no amor vai contra os sentimentos dos amantes modernos, aqueles que parecem mais básicos e naturais. O cliché segundo o qual "o amor é igual em todo o mundo" constitui uma maneira de evitar o pensamento incómodo de que as nossas emoções mais profundas podem ser estruturadas por expectativas e pressões sociais e não acontecem de forma expontânea. A diversidade tentadora do passado transforma o "Quem é que julgas que és?" numa pergunta inquietante."

7 comentários:

Anónimo disse...

... FINALMENTE!!!
... (relativamente ao ponto 1.)


... vou repetir-me, mas é mais um "MAGNÍFICO" Post

Anónimo disse...

Um belíssimo post sem dúvida. Manda a sensatez que esteja de acordo com o que diz. No entanto... no entanto não resisto a transcrever este pedaço de uma fraca edição da Odisseia:
fala de Penélope:"...Ah!, os deuses destinaram-nos à desgraça, invejando-nos a alegria de ficarmos um ao lado do outro, de saborearmos juntos a doçura da nossa juventude e de chegarmos juntos ao limiar da velhice...."
.....
"...Ele (Ulisses) soluçava, abraçado *a mulher cara a seu coração, à sua companheira fiel."
e mais à frente:
"Depois de terem saboreado os encantos do amor, os dois esposos saborearam o prazer das mútuas confidências."
.................................
Havia desejo em Ulisses por uma mulher envelhecida mais de 20 anos passados?...ou trata-se da história de dois velhos junto a um chalé coberto de rosas?

Anónimo disse...

Depois de ler estes dois posts,não há mais nada a fazer senão ler o livro(até porque gosto muito da cultura grega clássica).

João Gonçalves disse...

Francisco, o "pathos" está todo numa pequena frase: "os deuses destinaram-nos à desgraça". Leia o livrinho e depois falamos.

Anónimo disse...

Por acaso o Ocaso acontece em todo o lado!...

Anónimo disse...

"O amor é que é essencial.
O sexo é só acidente.
Pode ser igual
Ou diferente.
O homem não é um animal:
É uma carne inteligente,
Embora às vezes doente."


Fernando Pessoa

Anónimo disse...

Com carne e bolos
se enganam os tolos!