26.4.06

PAÍS DO EUFEMISMO

Ao ler levemente os comentários, as notícias e a blogosfera mais dada ao "respeitinho", tudo acerca do pós 25 de Abril de 2006 - por sinal nada político -, lembrei-me, não sei bem porquê, do "País Relativo" do O'Neill. Também gosto do Ruy Belo, como o presidente da República, mas não exactamente daquele Ruy citado. Parece-me que O' Neill vem mais a propósito do que se palrou ontem no Parlamento e do que se vai seguir, se é que se vai seguir alguma coisa. Trinta e dois anos depois continuamos como o poeta nos descreveu nos anos sessenta, "país engravatado todo o ano/e a assoar-se na gravata por engano."

País por conhecer, por escrever, por ler...

País purista a prosear bonito,

a versejar tão chique e tão pudico,

enquanto a língua portuguesa se vai rindo,

galhofeira, comigo.


País que me pede livros andejantes

com o dedo, hirto, a correr as estantes.


País engravatado todo o ano

e a assoar-se na gravata por engano.


País onde qualquer palerma diz,

a afastar do busílis o nariz:

-Não, não é para mim este país!

mas quem é que bàquestica sem lavar

o sovaco que lhe dá o ar?

Entrecheiram-se, hostis, os mil narizes
que há neste país.


País do cibinho mastigado

devagarinho.

País amador do rapapé,

do meter butes e do parlapié,

que se espaneja, cobertas as miúdas,

e as desleixa quando já ventrudas.


O incrível país da minha tia,

trémulo de bondade e de aletria.

Moroso país da surda cólera,

de repente que se quer feliz.

Já sabemos, país, que és um homenzinho...


País tunante que diz que passa a vida

a meter entre parêntesis a cedilha.

A damisela passeia
no país da alcateia,

tão exterior a si mesma

que não é senão a fome

com que este país a come.

País do eufemismo, à morte dia a dia
pergunta mesureiro: - Como vai a vida?

País dos gigantones que passeiam
a importância e o papelão,

inaugurando esguichos no engonço

do gesto e do chavão.

E ainda há quem os ouça, quem os leia,
lhes agradeça a fontanária ideia!


Corre boleada, pelo azul,
a frota de nuvens do país.

País desconfiado a reolhar para cima
dum ombro que, com razão duvida.

Este país que viaja a meu lado,
vai transido mas transistorizado.

Nhurro país que nunca se desdiz.


Cedilhado o cê, país, não te revejas

na cedilha, que a palavra urge.

Este país, enquanto se alivia,
manda-nos à mãe, à irmã, à tia,

a nós e à tirania,

sem perder tempo nem caligrafia.

Nesta mosquitomaquia
que é a vida,
ó país,

que parece comprida!

A Santa Paciência, país, a tua padroeira,
já perde a paciência à nossa cabeceira.

País pobrete e nada alegrete,
baú fechado com um aloquete,

que entre dois sudários não contém senão

a triste maçã do coração.

Que Santa Sulipanta nos conforte
na má vida, país, na boa morte!


País das troncas e delongas ao telefone

com mil cavilhas para cada nome.

De ramona, país, que de viagens
tens, tão contrafeito...


Embezerra, país, que bem mereces,

prepara, no mutismo, teus efes e teus erres.


Desaninhada a perdiz,

não a discutas, país!

Espirra-lhe a morte pra cima

com os dois canos do nariz!


Um país maluco de andorinhas

tesourando as nossas cabecinhas

de enfermiços meninos, roda-viva
em que entrássemos de corpo e alegria!


Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro

e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro.

Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar,
já o passo a meu filho, cansado de o olhar...


No sumapau seboso da terceira,
contigo viajei, ó país por lavar,
aturei-te o arroto, o pivete, a coceira,

a conversa pancrácia e o jeito alvar.

Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha;
entornado de sono, resvalaste para mim.

Mas também me ofereceste a cordial botelha,

empinada que foi, tal e qual clarim!

5 comentários:

Anónimo disse...

«Trinta e dois anos depois continuamos como o poeta nos descreveu nos anos sessenta, "país engravatado todo o ano/e a assoar-se na gravata por engano."»

Nem mais ...
... é o "post" certo
... e, só leu "levemente"
... "Excelente, delicioso" ...

Anónimo disse...

Cada linha mais verdadeira que a anterior. Genial...e certeiro da primeira à última letra. A começar em P e acabar em L

Anónimo disse...

é um belo texto, sem dúvida mas incongruente em relação às suas simpatias políticas.

António Viriato disse...

Oportuna repescagem de texto, que fez época, mas aguenta leitura nova, porque foi escrito por quem tinha verve e manejava com primor o idioma, coisas que raramente se acham juntas.Escasseiam-nos os seus sucessores, mas os motivos para o seu aparecimento abundam. Hoje mesmo, também recuperei um famoso texto de António José Saraiva, escrito em Janeiro de 1979 e que, na altura, incendiou consciências.É curioso verificar: quando há verdadeiro engenho do autor, os textos resistem à passagem do tempo; de contrário, esgotam a sua novidade no momento em que são lançados a público.

Manel disse...

Sim, é a grande verdade que, apesar de tudo, estamos muito iguais há 32 anos, e alguns muito fazem para que tal continue.
Eu, por exemplo não reconheço autoridade moral ao Presidente da República, em certas passagens do seu discurso oficial no 25 de Abril, além de não gostar da sonoridade das palavras que pronuncia. Mas isso não será defeito, mas antes feitio