6.1.07

GASPAR SIMÕES, VINTE ANOS DEPOIS


Corria o outono de 1984. Eu entrava no último ano do curso de direito e escrevia umas trivialidades no Semanário. Por causa de Fernando Pessoa, subi a Calçada das Necessidades, uma tarde, para falar com João Gaspar Simões. Nos anos sessenta e um pouco mais, Gaspar Simões não tinha praticamente concorrência na crítica e na divulgação literárias feitas em jornais. Anos a fio, Gaspar Simões reinou, nessa matéria e no país, praticamente sozinho no Diário de Notícias. Dizem os seus mais acérrimos detractores que ele se perdeu no tempo, que era "muito antigo" - logo ele, que foi um dos mais "modernos" -, que tinha sido ultrapassado, etc., etc. De facto, o tempo perdeu-se de Gaspar Simões e Gaspar Simões perdeu-se do tempo. Quando o encontrei, a menos de três anos da sua morte, rodeado de livros por todo o lado, apareceu-me um homem generoso, "contador" de histórias e conhecedor de muitos mundos. Nessa altura já havia pouco espaço para ele. Reconhecia-se, quando muito, o excelente divulgador, e, raramente ou com muito sacrifício, o crítico. Trabalhador incansável, Gaspar Simões fez o que pôde, entre textos, traduções e polémicas, pelo conhecimento da literatura. Numa época em que não há cão nem gato que não aspire a literato e a "crítico", Gaspar Simões permanece como o símbolo maior de um tempo que acabou há muito. Amava verdadeiramente os livros. Todavia, a ele se deve a revelação da "geração" da revista "Orpheu" ou de autores "mal afamados" na ortodoxia literária vigente como Virginia Woolf, Proust ou André Gide. O seu Pessoa ou o seu Eça, independentemente das famosas "teorias psicologistas" que lhes subjazem, continuam a ser obras insubstituíveis. Que diria Gaspar Simões hoje, no dia em que passam vinte anos sobre a sua morte, de "autores" que vendem aos milhares como Rodrigues dos Santos, Guedes de Carvalho, Lopo de Carvalho, Fátima Lopes ou mme. Rebelo Pinto? Provavelmente não perderia tempo a lê-los. A eles e aos seus alegados sucessores na crítica literária dos jornais, a maior parte deles um irrelevante grupo de pequenos "capelistas" e de pequenos mandarins que escrevem uns sobre os outros. Não morreu rico, antes pelo contrário. Se bem me lembro, foi preciso um "empurrão" financeiro do Palácio de Belém de Mário Soares para um módico de dignidade final. Tenho aí guardado algures um manuscrito seu a propósito da nossa entrevista e uma cópia do primeiro artigo que publicou sobre Pessoa. Para além do escritor e do crítico, recordo o homem que amava a vida, cortês no trato, um respeitável senhor de fato, gravata e lenço na lapela que se cruzava às vezes comigo num Chiado, como ele, entretanto desaparecido.

3 comentários:

António Viriato disse...

Felicito-o pela evocação de João Gaspar Simões, que também estimava, apesar da minha impreparação cultural, ainda maior naqueles tempos de juventude algo leviana, mas arrogante, que desdenhosamente o apelidava de «Gáspeas».

Tenho comigo essas duas monumentais biografias, grandemente pioneiras, que ele escreveu sobre Eça e Pessoa, durante muito tempo peças solitárias, mas imponentes, no panorama literário nacional, então parco em biografias, mesmo de nomes cimeiros das nossas Letras.

Está hoje muito injustamente esquecido, assim como o Suplemento Literário do DN, que ele pacientemente, proficuamente alimentava, com critério muito mais recto do que aquele vemos actualmente praticar nas folhas ditas culturais da Comunicação Social dos nossos dias.

Em muitos casos, na verdade, «as comparações são odiosas».

Pedro Correia disse...

Excelente e certeira evocação. De facto, o Pessoa e o Eça que conhecemos bem são ainda os do Gaspar Simões.

Anónimo disse...

Cumprimento-o por este texto. Você,mais uma vez, tem razão!