Não tenho "heróis". Pelos meus nove anos, morreu Salazar. De férias, nas termas do Vimeiro, lembro-me do funeral a preto-e-branco na sempre oficiosa RTP e de toda a gente de pé, na sala onde estava a televisão, quando tocou o hino. Marcello foi-me mais familiar pelas "conversas" que ouvia religiosamente, tal como aprendia com "O Tempo e a Alma" de José Hermano Saraiva. O "25/4" apanhou-me aos treze. Apreciava infantilmente o Spínola - aquelas primeiras deambulações épicas pelo "país real" de um PR fardado a preceito e de pingalim impressionavam - e só com Soares e Sá Carneiro percebi que havia política para além da tropa. Em trinta anos, no entanto, houve um homem que sempre respeitei e que me habituei a ver, passe o cliché, como um modelo de seriedade. Por ocasião do seu doutoramento, Jorge Miranda, que também foi meu professor por três vezes, chamou-lhe "herói" da democracia. De facto, se tivesse de escolher um grande português contemporâneo, o meu voto ia para o General António Ramalho Eanes. Atípico - não jacobino nem "educado" na oposição "intelectual" pequeno-burguesa e da classe média alta ao "Estado Novo", como Cunhal ou Soares, ou "liberal", como Sá Carneiro -, "formado" para a democracia no "terreno" duro de África onde aprendeu a ser um patriota sem se tornar reaccionário, refractário aos ditames e aos jargões do regime que ajudou a construir depois do "25 de Novembro", discreto, solitário e irrepreensível em matérias de interesse público, o General Eanes é, nos dias que correm, um exemplo de probidade que deve ser constantemente recordado. Andou bem o Expresso ao entrevistá-lo por ocasião do seu 72º aniversário. Conheci-o em 1980 e posso considerá-lo um amigo da mesma maneira que a História, um dia, o recordará com um dos grandes amigos do país. Eanes gostou sempre mais desta terra do que Portugal, alguma vez, gostou dele. De facto, esta choldra piolhosa não merece homens de carácter como Ramalho Eanes. Fez, como poucos, o que pôde.
7 comentários:
Subscrevo, sim senhor.
O que já me custa a ver - porque ando muito céguinho - é o "regime que ajudou a construir" ...
A - Na segunda metade da década de sessenta, um tenente da Escola Prática de Infantaria em Mafra, ao saír da Escola no seu automovel para Castelo Branco e dando boleia a um jovem Aspirante do quadro de quem era instrutor:
"Senhor Aspirante, a partir de agora, somos ambos cidadãos".
Muito mais tarde, nos nossos dias, parece ter sido descoberto o termo «cidadania», tanto se fala e se pretende cultivar. Mau sinal dos dos novos tempos.
B - No jantar de ontem, com parte do seu staff da PR, a mesma simplicidade e informalidade de sempre. Agora que a sociedade civil parece ter descoberto o vício da «formalidade» lusitana e dos seus doutores.
"Como gostaria de ser lembrado?", pergunta um jornalista após o doutoramento. "Simplesmente como Eanes".
Na falta de uma sua biografia, ou mesmo auto-biografia, esperemos pela tese de doutoramento.
C - Efectivamente, o regime que ajudou a construir, parece não ter dado pelo seu exemplo - rigor, austeridade, simplicidade. Talvez estejamos agora a pagar a factura, como alientou o embaixador Fernando Reino ao tomar a palavra no jantar.
Quanto a mim, estamos a aturar o fruto da má educação de tantos arrivistas da política, que ele teve de aturar e 'deixar' andar. Em vez de os fazer arredar do sistema.
Mas isso pensava então eu, tão perto dele, tão longe da sua elevada responsabilidade.
Num tempo bem mais difícil que o actual. Se o regime tem fundadores, aqui temos um. Grande.
Concordo com quase tudo dito anteriormente.Devemos-lhe muito na estabilização e consolidação dum regime democrático,com as suas vantagens e inconvenientes em Portugal. Tinha uma formação cultural muito limitada,que agora certamente corrigiu e melhorou,mas que o fez fascinar com o falso brilho das falácias de pessoas como a Engª Pintasilgo,ao ponto de a nomear P.Ministro,talvez o maior erro que cometeu,e que pela entrevista de hoje parece ainda não ter bem medido o alcance. Mas é sobretudo um "Homem Bom",espécie rara,e que merece ser homenageado agora enquanto vivo e são,e não quando desaparecer,o que de nada lhe servirá.
Vale mesmo a pena ler a entrevista.
Que grande experiência de vida. Desde Goa e o seu específico «modelo» de Governação, a cinco missões no Ultramar, desde a referência à lindíssima Carta de Pêro Vaz de Caminha (disponível na Net!), até ao 25 de Novembro de 1975, etc.
Excelente evocação, que subscrevo na íntegra.
Num tempo de arrivistas (políticos e outros), incultos, mal-educados, hipócritas "ad nauseam" e imcompetentes que basta, nunca é demais lembrar alguém que apesar de alguns erros (quem não os comete), é um exemplo de honestidade, competência, patriotismo e rigor.
Bem haja.
Uopss, enganei-me.
Obviamente deveria ter escrito incompetentes.
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