O Tomás comprou o "Antes que anoiteça", do Arenas, no aeroporto de Madrid, a caminho de Cuba. Eu lembro-me de estar a ler a tradução portuguesa, da Asa, num comboio pré-Alfa Pendular entre Lisboa e Coimbra, em 1995. Em Junho desse ano, tinha ido a Cuba pela primeira vez e regressaria para o Natal e Ano Novo. Foi, aliás, no dia de Natal desse ano, passado numa Havana absolutamente tropical, que um rapazito, daqueles que perseguem os "turistas" por todo o lado na esperança de levarem qualquer coisa para casa, e a quem eu recusei dar fosse o que fosse (o meu mau feitio vai sempre na bagagem), me pôs o braço pelos ombros e me disse, com a altivez improvável da sua infelicidade, e num espanhol "acubanado" perfeitamente perceptível e sábio: "tu não és mau, o que estás é amargurado". Como católico, o tal mezzo credenti do Vattimo, poderia assumir que, sob a forma daquele menino pobre de olhar luminoso, o Filho do Homem me tinha vindo dizer qualquer coisa, ao sol escaldante de um Natal diferente. Desgraçadamente esse breve desconhecido conheceu-me melhor, em segundos, do que eu, numa vida inteira, jamais me hei-de conhecer. Nesse mesmo dia, na praça da Catedral de Havana, comprei na rua livrinhos "proibidos" pelo regime, que me foram exibidos discretamente num piscar de olhos, justamente por causa de já ter lido as "memórias" de Arenas. De facto, há quem cite Arenas supostamente a crédito de coisas em que ele nunca acreditou. De Cuba ao exílio nos Estados Unidos, Arena manteve, mesmo na doença e no tremendo sofrimento interior que levou na bagagem, a lucidez. Bem anda o Tomás quando o cita: "A diferença entre o sistema comunista e o capitalista é que, embora ambos nos dêem um pontapé no cu, no comunismo dão-no-lo e temos de aplaudir, e no capitalismo podemos gritar; eu vim para gritar." Eu gostava que aquele menino do dia de Natal de 1995, que desapareceu, como tinha aparecido - com um pontapé no cu numa ruela suja de Havana - e, hoje, já seguramente um homem adolescente, pudesse vir, aqui e agora, dizer-me o mesmo.
9 comentários:
É um problema comum: excesso de literatura e falta de experiência de vida. E são as pessoas que pensam lidar mais de perto com a tradição greco-latina as que no fundo melhor a esquecem (sob a influência da outra tradição, hoje dominante, a judaico-cristã). Esquecem por exemplo que "primeiro viver, depois filosofar".
E se vc fosse para o caralho?
Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro
Era longe o meu sonho
E traiçoeiro o mar...
Só nos é concedida esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso procurar
O velho paraiso que perdemos.
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao quais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura
O que importa é o partir, não o chegar
Miguel Torga
Sr. Goncalves, a ver se arranja algo, ou alguem, que lhe alivie um pouco da amargura...
...
E a luxúria única de não ter já esperanças?
...
Álvaro de Campos
JG, vou-te deixar aqui um poema, Exorcismo, para te aquietar esse espírito, sempre em remoinho, e desejar que dês passos em frente. Sei que vais voar, apaixona-te pela luz e pela cor da cidade e no Domingo exorciza a tua melancolia, rezando baixinho. Aqui vai, com amizade.
Exorcismo
Hoje,
não quero sonhos nem cadeias,
nem saber para onde vou ou donde vim.
Se a vida foge,
seja o sangue que palpita em minhas veias
a mandar em mim!
Bonito texto.
Não remoa demasiado o que já passou, não vale a pena. Da próxima vez, mesmo que não tenha nada para dar, diga que não com um sorriso. Sempre ilumina um pouco. Quem recebe e quem dá. Acredite.
Filipa
Mas hoje, no capitalismo, bem podemos gritar que ninguém nos ouve...
Acessei o sitio porque estvaa pesquisando sobre Arenas. Muito interessante o filme con Javier Bardem.
Gostei do texto sobre o menino cubano.
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