... de um país feito a partir de uma cidade - Lisboa -, por Eduardo Pitta:
Lugar-comum: a classe política é medíocre. De facto. Mais do que reflectir a mediocridade geral, o elenco de candidatos presidenciais (em que pese a minha simpatia por Soares e, por exclusão de partes, o voto correlato) traduz o huis clos da sociedade portuguesa. Se a sociedade é o que sabemos, porque carga de água teríamos outra classe política? Duas horas na rua, ao domingo, em Lisboa — e não estou a falar da Baixa, porque já ninguém vai à Baixa; nem das periferias étnicas, que são outra coisa; nem sequer do cenário de cartão do Parque das Nações —, na cidade burguesa que sobrou, e hoje é quase nada — a quadrícula das Avenidas Novas que vai da Versailles a Entrecampos, umas ruas na Lapa e em Campo de Ourique, o anel do Príncipe Real, o Chiado que vai da Bertrand a São Carlos, adjacências da Praça de Londres e Avenida de Roma, decerto Alvalade e São Miguel —, duas horas neste microcosmo chegam e sobram para deprimir. O confronto com cidades europeias — não, não estou a pensar em Londres, Berlim ou Paris; mas em Madrid, Bruxelas ou Praga — é um exercício desencorajante. Um terço da cidade está a ruir. Oitocentos mil carros atravessam, todos os dias, o centro. As livrarias não têm fundos. Em toda a cidade, um único café digno do nome. Um. Em anos felizes, a temporada de ópera são doze dias: quatro programas, três sessões cada (regra geral, menos). Música clássica, a que a Gulbenkian se lembra de dar, em regra boa, mas pouca, e sempre para os mesmos, porque a coisa funciona em circuito restrito. Jazz, foi chão de antiquíssimas uvas. Teatro de repertório? Acabou em 1974. Do outro, vai havendo, mas os Artistas Unidos e a Cornucópia são ilhas para happy few. Estamos a falar de uma área metropolitana com 2,8 milhões de pessoas; tudo o que seja menos de 20 teatros, a sério, abertos todos os dias, é nada. Música pop, entre o foleiro e o standard MTV. Ciclos anuais de cinema (documental, gay & lésbico, francês, etc.) para as trezentas pessoas do costume, quase sempre com horários que não contam com as pessoas «comuns». Entre Outubro e Maio, cinco lançamentos de livros por dia. Ninguém vai. Dança? Raramente dou por ela. Pintura? Era bom. De fora não vem nada e não é preciso explicar porquê. Quanto ao mercado indígena, simplesmente parou. O boom dos anos 1980 era artificial mas marcou uma época. Tirando Cabrita Reis e Croft, ninguém se lembra dos vinte génios que o Alexandre Melo descobriu nessa altura (Sarmento não precisou de ser «descoberto»). A larga maioria das bancas de jornais fecha aos domingos e feriados. Não se pode andar a pé porque os passeios estão cheios de carros. Sobra o quê? Espaços à míngua de espectáculos e de público? Museus melancólicos? Um CCB votado a passeio dos tristes? Uma Festa da Música cada vez mais pobrezinha? O rio, que agora se chama «docas», por conta do negócio de secos & molhados? Noutro patamar de exigência há meia dúzia de restaurantes tão caros como os de Paris ou Nova Iorque. Felizmente temos a luz, em Lisboa deveras sublime. O pior é a porcaria assim iluminada. Único elo que nos liga ao mundo: as salas de cinema. Dizem-me que «a noite» tem movida. Terá. As vezes que fui «aos» sítios que estão a dar, tudo me pareceu sem o mínimo pique e, convenhamos, a tender para o ordinarote (quanto mais fashionable mais vulgar). Onde é que eu ia? Pois, Lisboa, domingo, duas horas na rua. Igualzinho ao que era em 1973, por esta altura do ano: um friozinho pindérico, famílias compostas, matriarcas de voz grave, herdeiros muito louros e irreverentes (hoje só no trazerem o cós das calças a meio dos pêlos púbicos), o BMW em contravenção, a pesporrência altissonante do dinheiro. Tal como em 1973, nada produzimos. Belmiro, epítome do «sucesso», é o quê? Um empresário da distribuição. Nada contra. Mas dá a medida da vocação do país. Quatro quintos do pessoal político veio das berças, saltou da carroça para o Porsche, acotovelou, trepou e instalou-se. Ao pé da maioria, Santana, que é o que a gente sabe, passa por príncipe da Renascença (Agustina dixit). Tem de haver um meio-termo entre a rebaldaria dos descamisados e esta macaqueação do antigamente: tédio, discurso, tiques, sinais exteriores de dominação. Afinal, os últimos trinta anos serviram para quê?
Lugar-comum: a classe política é medíocre. De facto. Mais do que reflectir a mediocridade geral, o elenco de candidatos presidenciais (em que pese a minha simpatia por Soares e, por exclusão de partes, o voto correlato) traduz o huis clos da sociedade portuguesa. Se a sociedade é o que sabemos, porque carga de água teríamos outra classe política? Duas horas na rua, ao domingo, em Lisboa — e não estou a falar da Baixa, porque já ninguém vai à Baixa; nem das periferias étnicas, que são outra coisa; nem sequer do cenário de cartão do Parque das Nações —, na cidade burguesa que sobrou, e hoje é quase nada — a quadrícula das Avenidas Novas que vai da Versailles a Entrecampos, umas ruas na Lapa e em Campo de Ourique, o anel do Príncipe Real, o Chiado que vai da Bertrand a São Carlos, adjacências da Praça de Londres e Avenida de Roma, decerto Alvalade e São Miguel —, duas horas neste microcosmo chegam e sobram para deprimir. O confronto com cidades europeias — não, não estou a pensar em Londres, Berlim ou Paris; mas em Madrid, Bruxelas ou Praga — é um exercício desencorajante. Um terço da cidade está a ruir. Oitocentos mil carros atravessam, todos os dias, o centro. As livrarias não têm fundos. Em toda a cidade, um único café digno do nome. Um. Em anos felizes, a temporada de ópera são doze dias: quatro programas, três sessões cada (regra geral, menos). Música clássica, a que a Gulbenkian se lembra de dar, em regra boa, mas pouca, e sempre para os mesmos, porque a coisa funciona em circuito restrito. Jazz, foi chão de antiquíssimas uvas. Teatro de repertório? Acabou em 1974. Do outro, vai havendo, mas os Artistas Unidos e a Cornucópia são ilhas para happy few. Estamos a falar de uma área metropolitana com 2,8 milhões de pessoas; tudo o que seja menos de 20 teatros, a sério, abertos todos os dias, é nada. Música pop, entre o foleiro e o standard MTV. Ciclos anuais de cinema (documental, gay & lésbico, francês, etc.) para as trezentas pessoas do costume, quase sempre com horários que não contam com as pessoas «comuns». Entre Outubro e Maio, cinco lançamentos de livros por dia. Ninguém vai. Dança? Raramente dou por ela. Pintura? Era bom. De fora não vem nada e não é preciso explicar porquê. Quanto ao mercado indígena, simplesmente parou. O boom dos anos 1980 era artificial mas marcou uma época. Tirando Cabrita Reis e Croft, ninguém se lembra dos vinte génios que o Alexandre Melo descobriu nessa altura (Sarmento não precisou de ser «descoberto»). A larga maioria das bancas de jornais fecha aos domingos e feriados. Não se pode andar a pé porque os passeios estão cheios de carros. Sobra o quê? Espaços à míngua de espectáculos e de público? Museus melancólicos? Um CCB votado a passeio dos tristes? Uma Festa da Música cada vez mais pobrezinha? O rio, que agora se chama «docas», por conta do negócio de secos & molhados? Noutro patamar de exigência há meia dúzia de restaurantes tão caros como os de Paris ou Nova Iorque. Felizmente temos a luz, em Lisboa deveras sublime. O pior é a porcaria assim iluminada. Único elo que nos liga ao mundo: as salas de cinema. Dizem-me que «a noite» tem movida. Terá. As vezes que fui «aos» sítios que estão a dar, tudo me pareceu sem o mínimo pique e, convenhamos, a tender para o ordinarote (quanto mais fashionable mais vulgar). Onde é que eu ia? Pois, Lisboa, domingo, duas horas na rua. Igualzinho ao que era em 1973, por esta altura do ano: um friozinho pindérico, famílias compostas, matriarcas de voz grave, herdeiros muito louros e irreverentes (hoje só no trazerem o cós das calças a meio dos pêlos púbicos), o BMW em contravenção, a pesporrência altissonante do dinheiro. Tal como em 1973, nada produzimos. Belmiro, epítome do «sucesso», é o quê? Um empresário da distribuição. Nada contra. Mas dá a medida da vocação do país. Quatro quintos do pessoal político veio das berças, saltou da carroça para o Porsche, acotovelou, trepou e instalou-se. Ao pé da maioria, Santana, que é o que a gente sabe, passa por príncipe da Renascença (Agustina dixit). Tem de haver um meio-termo entre a rebaldaria dos descamisados e esta macaqueação do antigamente: tédio, discurso, tiques, sinais exteriores de dominação. Afinal, os últimos trinta anos serviram para quê?
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