Eu teria para aí uns dezasseis anos quando Fernando Pessoa entrou definitivamente na minha vida. Acabara-se a fase dos poetas parnasianos, com Pessanha à cabeça. Nas fotocópias distribuídas pela professora, para ilustrar a nova matéria, figurava o nome de Alberto Caeiro. Teoricamente o mais "simples" dos heterónimos, Caeiro, o "mestre" dos olhos azuis, escondia o resto. Aos poucos, Pessoa chegava pela sua própria voz e, sobretudo, pela do genial e febril "engenheiro de máquinas", Álvaro de Campos. Bernardo Soares viria muito mais tarde. A descoberta de Fernando Pessoa equivale a um murro no estômago. Não é possível, a não ser por pura iliteracia, ficar indiferente ao mínimo verso do homem. Eu digo "homem" com esforço, apesar de sabermos da sua errância por Lisboa, do seu emprego, dos seus "amigos". Na realidade, Pessoa, como tal, pouco existiu, naquele sentido frívolo que costumamos dar ao termo "viver". De certa maneira, não o podia fazer já que apenas "viveu" nesse lugar de abismo e de realidade que era a letra dos seus versos. Já fui mais "pessoano" do que sou hoje. Tive o privilégio de falar pessoalmente, uma tarde inteira na sua casa, com João Gaspar Simões, por ocasião dos cinquenta anos da morte de Pessoa. Li os livros de Prado Coelho, Lind, Eduardo Lourenço e Casais Monteiro. Quis, nessa altura, "perceber". Não sei se alguém o conseguirá alguma vez plenamente. Muitas vezes pego na belissima edição da Aguilar e escolho o acaso de um verso. "Todo o cais é uma saudade de pedra", por exemplo. Como escreveu Eduardo Lourenço em 1952, "muitos homens tiveram saudades e viram cais, mas temos razões para chamar momento raro a esse em que uma consciência de poeta arrancou do mundo das palavras portuguesas esta espécie de inscrição de estela imortal, que depois dele todos temos guardado em algum sítio, todos, os que viajaram e os que só na alma viajam". Em setenta anos, Pessoa permanece como uma espécie de cometa trágico que, do alto da sua inexpugnável solidão, nos ilumina. "Pessoa limitou-se a sentir e a pensar o existente, bem ou mal não interessa, e a compreender que uma consciência está sempre aquém e além de todas as coisas, jamais coincidente com a existência delas. E mesmo com a existência em geral. Fê-lo como nunca ninguém o tinha feito. Nem Antero. Mas com isso o extraordinário poeta do "lado ausente de todas as coisas" não "serviu" ninguém. Serviu a sua inviolável solidão e pediu aos outros que cercassem a deles de altos mutos. Não cremos (Pessoa é muito complexo) que a sua poesia seja alheia a outros gestos igualmente últimos do homem: o apelo da fraternidade, da esperança, do amor. Se assim for, significa que é limitado e nada mais. Há homens (houve sempre e pessoalmente desejamos que a sua raça estéril e altiva nunca mais acabe) que não são capazes de olhar até ao fim o espectáculo do mundo e da história tendo aí a palavra "esperança". Homens do Inferno, se acreditarmos em Dante. Fernando Pessoa talvez tivesse sido um deles. E porque não devia sê-lo?"
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