26.6.03

WOTAN

Ouço neste momento o dueto de Sieglinde e Siegmund, do I Acto de "A Valquíria", a 1 ª jornada do magní­fico e cada vez mais moderno "Anel do Nibelungo", de Richard Wagner. Para quem conhece a trama, julgo que esta ópera - quase sempre só conhecida pela cena da "cavalgada" com que abre o III Acto - é das mais dramaticamente intensas da tetralogia, na qual sobressai a extraordinária densidade do texto de Wagner, particularmente nos lances em que são intervenientes Wotan, Brühnnhilde, e secundariamente Fricka. O deus Wotan, o "senhor dos exércitos" e pai das Valquírias, deixou-se envolver pelo poder do "ouro do Reno" no homónimo prólogo da tetralogia, cuja maldição obriga a renunciar ao amor. Tudo gira, nestas quatro óperas, em torno da ambição, do amor e da respectiva renúncia, da solidão dos poderosos, num caminhar violento e desesperado para o "crepúsculo dos deuses" - anunciado por Erda no Prólogo, "O Ouro do Reno" - com que se encerra a tetralogia. Essa atracção pelo abismo, começa logo na 1 ª jornada, com Wotan, essa figura nuclear de todo o texto e a quem Wagner atribuiu das melhores "falas " em toda a obra ( vejam-se o monólogo e o dueto do III Acto de "A Valquíria", com a filha predilecta, Brühnnhilde ), a pedir "o fim" quando percebe que ele, o deus, é o menos livre de todos, menos do que Siegmund ( também seu filho noutras núpcias ), que o capricho corporativo de sua mulher, a deusa Fricka, quer que seja lançado para a morte em combate. Por isso, Wotan pede, junto de Brühnnhilde, pela emergência de um homem "mais livre do que eu, o deus", o futuro fruto do amor incestuoso de Siegmund e Sieglinde, que dá o nome à segunda jornada do "Anel", "Siegfried". Wotan é pois uma criatura dos nossos dias, dilacerada e dividida entre o poder e o amor, entre a cobiça e a compaixão, um titã solitário. E Brühnnhilde, não já a filha do deus, mas a amante de Siegfried, depois da morte deste no "Crepúsculo dos Deuses", diz-nos que quer deixar este mundo de desejo e de desespero. O fim consuma-se com o desparecimento do Walhalla, a mansão dos deuses, no fogo ateado para a pira de Siegfried e para onde Brühnnhilde se precipita. Esta imensa e genial obra metafórica tem sido objecto das mais controversas interpretações, mas julgo que, apesar de algum "gauchisme" subjacente à concepção da encenação de Patrice Chéreau, a versão de Pierre Boulez, no Festival de Bayreuth de 1976, disponí­vel em DVD, continua a ser das mais fascinantes. Em CD, recomendaria duas versões, para além da de Boulez: a primeira gravação em estúdio da tetralogia, sob a batuta de Sir Georg Solti, e que levou vários anos a gravar, com os melhores intérpretes wagnerianos da altura, e a sumptuosa Wiener Philarmoniker, e a versão de 88/91, de James Levine, também em DVD, com a Metropolitan Opera Orchestra de Nova Iorque, em que sobressai um dos maiores Wotans dos nossos dias, James Morris, que em Julho estará no papel no Liceu de Barcelona. Há mais de vinte anos que não se representa o "Anel" em São Carlos. Eram então directores, primeiro João Paes, e depois, Serra Formigal, com quem se concluiu a tetralogia em 1982. Antes de me vir embora do Teatro, deixei a sugestão de se começar a tetralogia numa próxima temporada. Apontei Graham Vick ao director para a encenação, depois de assistir à sua "Manon Lescaut" nesta temporada. A ver vamos, como dizia o cego, posto que o Wotan também é cego de um olho e apresenta-se com ele normalmente vendado.

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