9.9.04

AS TREVAS



Do lado de lá do Atlântico, Santana Lopes vem-me falar em "orgulho nacional". Eu, confesso, tenho muito pouco desse "orgulho" e convivo excelentemente com isso. Quatro sinais dos últimos dias vieram, aliás, confirmar a minha convicção. O primeiro veio de Coimbra, pela mão de uma juíza (um "jurista", sempre um jurista). Já aqui disse o que pensava do "barco do aborto". Aquele colorido folclórico não me impressiona. O que me maça é a ignorância do "direito comunitário" revelada pela magistrada quando deu razão ao Dr. Portas. Alguém, um dia, fará o favor de lhe explicar o que é o direito à livre circulação de pessoas e bens dentro do espaço da União Europeia, qualquer coisa que muito bom e benemérito português, pelos vistos, ainda não entendeu. O segundo sinal, ainda relacionado com isto, veio de uma tal "associação maternidade e vida" que solicitou a intervenção da PGR contra a dirigente das "Women on waves". Esta senhora, ao que consta, terá explicado em directo, na televisão, como é que se pode interromper a gravidez. Vai daí, esta benemérita "associação" quer vê-la arguida e, de preferência, detida por ter convocado o "mal" diante de toda a gente. Em terceiro lugar, leio que o director do Teatro São Luiz recebeu umas cartas ameaçadoras, certamente remetidas por outros beneméritos, por causa da peça "Evangelho segundo Jesus Cristo", baseada na obra homónima de Saramago que ali vai ser representada. Também estou à vontade porque não gosto de Saramago. Finalmente ocorreram uns protestos espúrios por se ter celebrado um rito funerário maçónico na Basílica da Estrela. O mui católico e cristão cónego da dita Basílica, disse-o, não teria autorizado se tivesse sabido. Farto de saber estava ele, porém, certamente alguma advertência de outros beneméritos o terá chamado tardiamente "à razão". Uma das coisas bonitas que tem a iniciação maçónica é o momento em que ao candidato de olhos vendados, depois de ter sido sujeito a uma série de provas, é concedida a "luz". Licht, mehr Licht, como clamava o poeta. Para os beneméritos do meu texto é escusado pedir a "luz". Eles imaginam o país e o mundo à sua patética imagem e semelhança e, pior do que isso, querem e exigem doutrina geral. Seja feita a nossa vontade, é o seu lema, sempre com três hipócritas pancadinhas no peito. São certamente dos que transpiram "orgulho nacional" por todos os poros. E transpiram tanto que até cheiram mal, já que vivem e respiram nas "profundezas". São, desde tempos imemoriais, os mesmos filhos das trevas, agora apenas revistos, corrigidos e aumentados.

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