19.8.05

MICRO-CAUSAS (actualizado)

O primeiro-ministro vai "aparecer" numa repartição de finanças dita "modelo", em Cascais, para a revelação de pequenos "choques tecnológicos" tributários destinados a "combater" a fraude e a evasão fiscais, dois fenómenos que continuam alarvemente a rir-se de qualquer governo. Por outro lado, vai "anunciar" que o Estado conseguiu a extraordinária proeza - como se não fosse essa a sua estrita obrigação - de ter arrecadado, em Julho, cerca de 700 milhões de euros provenientes de impostos. Até agora, nada de novo. Só lamento que, em vez de escolher a segunda ou terceira maior repartição de finanças do país, Sócrates não aproveite o ensejo para levar os jornalistas até outras, mais modestas, mais surrealistas e com um volume de trabalho significativo, como as de Alvalade, em Lisboa, ou a de Odivelas. Aí, o "choque" continua a ser o mesmo. Há cerca de um ano chamei a atenção para as condições de funcionamento da primeira repartição e, há apenas uns meses, da de Odivelas que só então conheci. Não mudou nada entretanto. Só mudou o governo, já que os propósitos "modernizadores" são exactamente os mesmos, independentemente do executivo. Por isso, republico esses posts, cuja actualidade infelizmente se mantém, na esperança de que, da próxima vez que houver mais "receita" para atirar aos olhos dos mais distraídos e mais "progresso" para oferecer aos mais crédulos, se atente no elementar.


Por razões profissionais, estive numa repartição de finanças de Lisboa. A actual sofisticação terminológica de "serviço de finanças" não mudou em nada a substância do exercício. É vulgar "dizer mal" das "finanças" já que a menção lembra invariavelmente "imposto". Acontece que também é importante, de vez em quando, ver o "outro lado". Este "serviço de finanças" que visitei é o mais "pesado" de Lisboa. Situa-se em Alvalade, numa rua ironicamente chamada "do Centro Cultural". Dizem-me que se trata de um arrendamento de um edifício que pertenceu ao Montepio Geral e que custa cerca de vinte e cinco mil euros mensais aos pagadores de impostos. Visto de fora, até não parece mau. Uma vez lá dentro, percebe-se que aquilo podia ser tudo menos um local de trabalho e um serviço de atendimento ao público. Com três andares, a estrutura tem os tectos rebaixados e falsos - talvez por se pensar que o "contribuinte médio" e o "funcionário público" são mesmo médios de altura - e constitui uma perversa fornalha. Os funcionários explicaram-me que, de inverno, usam roupas de verão porque a temperatura ambiente é naturalmente quente. O ar condicionado é uma metáfora inútil enfiada nas paredes e no chão, dado que não funciona. Os aparelhos colocados junto das janelas mal dão para arrefecer a água que tem que ser consumida aos litros pelos funcionários. O ar é praticamente irrespirável. Pedi para ver o "livro das reclamações". A falta de condições é tão evidente que o "cliente"/contribuinte prefere denunciar as "condições de trabalho" primitivas dos funcionários que os atendem da maneira que podem. Só um "sentido de serviço" arrancado não sei bem a que profundezas das almas daquelas criaturas permite aguentar tamanho opróbrio. Sinceramente, é possível continuar com as bravatas demagógicas da "produtividade", da "melhoria de desempenho" e dos "indicadores" quando não se consegue instalar decentemente umas dezenas de pessoas nos respectivos postos de trabalho? Para quê continuar a acenar aos distraídos e aos ingénuos com a "reforma do Estado" se, numa coisa simples como ter um lugar equilibrado para trabalhar e atender gente, quase se sufoca todo o santo ano, ao ponto dos de fora lamentarem os de dentro? Isto é que é "modernizar a administração pública ao serviço dos cidadãos"? Ou os "cidadãos" que servem na administração pública são menos "cidadãos"? Este episódio da vida material é apenas mais um retrato da mesma miséria e da velha falácia. A única diferença é que agora lhe chamam "tempo novo".


A chamada vida material conduz-nos muitas vezes ao confronto com o absurdo. Em Setembro passado, por motivos profissionais, estive numa das mais deprimentes repartições de finanças de Lisboa, para os lados de Alvalade. Apesar dos esforços que empreendi, dentro das minhas limitadas possibilidades, presumo que os funcionários e os contribuintes continuam a ter que frequentar o mesmo local e nas mesmas condições de há nove meses. Desta vez calhou-me a repartição de Odivelas, uma "cidade afavelada" nos arredores de Lisboa. O dito "serviço público" encontra-se escondido num beco sem saída e com uma entrada que mais parece uma traseira de um armazém. Aliás, explicaram-me, ali esteve acomodada... uma fábrica de "pickles". Como se pode constatar, é, sem dúvida, o edifício mais adequado para pessoas trabalharem com papéis e com as "novas tecnologias de informação" (consegui escrever estas quatro palavras sem me rir) e para outras serem recebidas. Da acumulação de gente pelas escadas - aquilo possui dois ou três pisos - nem vale a pena falar. Das condições de atendimento e da privacidade desse atendimento, ainda menos. À semelhança do que acontecia em Alvalade, também em Odivelas o ambiente é insuportável, irrespirável e deprimente. O ar condicionado tipicamente não funciona. Nem sequer me preocupei em pedir o livro de reclamações. Não vale a pena. O Estado devia ser o primeiro a dar exemplos de cidadania. É quase sempre o último ou, quando muito, fá-lo nas piores condições. Eu há muito que desisti deste país e, por consequência, tendo a levar muito pouca coisa a sério e quase nada me impressiona. Contudo, acho lamentável que concidadãos meus, por dever de ofício, tenham que conviver diariamente com este inferno em pleno século XXI. A vida é demasiado curta para não ser vivida com qualidade. E a maior parte de nós passa grande parte dessa vida a trabalhar em circunstâncias deploráveis. Jamais estaremos perto - já não digo do norte da Europa para não ruborizar de vergonha - dos nossos parceiros comunitários. Em compensação e com exemplos destes, estamos bem mais próximos de um qualquer posto oficial do Marrocos profundo (...).


Adenda: A repartição de finanças de Queluz tem entrada por uma garagem e os contribuintes "esperam" num corredor de acesso destinado primariamente a automóveis. A da Reboleira, na Amadora, divide-se entre uma cave lúgubre e um rés-do-chão em que ambos mal dão para os funcionários circularem, quanto mais os "pagadores", com entradas distintas que obrigam a dar uma volta a, pelo menos, meio quarteirão. Acresce que, por manifesta falta de condições, o respectivo "wc" está vedado ao público. Para os funcionários, existe uma chave que dá acesso ao dito, se bem que seja necessário recorrer a um balde, que, uma vez cheio de água, substitui o autoclismo! Qualquer destas repartições, ao pé de outras da "província", deviam fazer corar de vergonha os evangelistas do "progresso". Que tal uma visitinha, eng.º Sócrates?

Adenda II: Segundo o Portugal Diário e o Diário da República, "a nova assessora de imprensa do ministro Teixeira dos Santos, Fernanda Pargana, por exemplo, vai ganhar por mês 4500 euros, como determina um despacho datado de 3 de Agosto." Sugeria-lhe, à laia de estágio no "sector", uma "reportagem" nalgumas destas repartições de finanças para levar ao conhecimento do Senhor Ministro.

1 comentário:

Anónimo disse...

Eu gosto muito deste blogue, que considero dos mais inteligentes e argutos nas análises que faz, mas não há dúvida de que você é realmente demasiado exigente. O governo sá está em fuções há 5 meses! Quanto ao combate à evasão fiscal, já avançou imenso (isso é dito por todos), mas, como você sabe, não se mudam esquemas e hábitos e defeitos em poucos meses! Evidentemente que ainda há muito a fazer, mas vamos com calma, a legislatura é de 4 anos!