4.11.09

DERROTA, PALAVRA PEQUENINA PARA DENOTAR SEJA O QUE FOR


«Lembro-me do tempo em havia futuro e se pensava que à noite se seguia o dia, que uma inteligência oculta e justiceira se encarregaria de dar sentido ao tempo, premiar o valor e condenar e maldade. Tudo isso desapareceu. Ficámos, eu e a minha geração, agarrados a teorias sem ponto de aplicação, à ideia de um Portugal com glória e luz de que todos, afinal, se riem, a um comedimento inibidor - chamar-lhe-ia uma discreta elegância - que a geração que nos precedeu tomou por cobardia e que a geração que nos sucedeu interpreta como quixotismo. Assusta-me a possibilidade que tanta devastação e tanto trepadorismo alvar tenham mudado o meu país ao ponto do não regresso, que estamos condenados, eu e a minha geração, a imaginar um Portugal que já não existe e viver cercados por gente que já não fala a nossa língua. A minha geração não produziu ninguém que se impusesse. Os da nossa idade [mas não os da nossa geração] que ganharam as palmas não passam de factotums e habilidosos dispostos a todas as curvaturas de espinha, a toda a sorte de cumplicidades e golpes. É ver-lhes a insegurança nos olhos, o falar postiço, as frases vazias, a chuva de valores num deserto de convicções. É sentir-lhes inautenticidade na importância com que falam de carreiras sem currículo, de prosápia que não sabe compor e assinar por baixo um texto. É vê-los, de faca em riste, barricados nas suas sinecuras que todos pagamos, aterrorizados com a ideia que alguém um dia os venha desalojar.»

Miguel Castelo-Branco, Combustões

4 comentários:

P. S. Albergaria disse...

Texto estupendo. Um descrição seca e dura do que é.

Anónimo disse...

Triste sina a de quem vê com implacavel lucidez um povo a refocilar na sua miséria.
Nauseated Portuguese

Anónimo disse...

Pois é. Não conheço o Miguel Castelo-Branco, logo, não sei que idade tem, por isso ignoro a que geração pertence, mas estou em crer que andará por uma Pessoana meia centena de anos, quiça pouco menos. Por isso, não o culpo a ele por este retrato bem visto de Portugal, não de uma geração, embora também, culpo, isso sim, Fernando Pessoa, não por o ser, mas por ter explicado e, logo, definido a fórmula para descodificar este problema que trespassa muito boa gente que acaba por ser da pior gente. São aqueles tipos e tipas para quem saber que pode fazer é melhor que fazê-lo, saber que poderia ser é melhor que sê-lo, tem noção de que sabe é melhor que demonstrá-lo... e por esse caminho fora. Conheço muita gente assim, que, concientes, cultos e com alguma sagesse incorporada, apesar de tudo, que não faz, não quer fazer e está-se cagando para quem faz... por causa da sua finitude que, traduzo num simples "caguei". Basta estar e ir vivendo benzinho, porque esta gentalha que manda não merece mais. O imediatismo com que se vive, nestes casos, não é egoista, embora pareça. Creio que há um imenso "exército" destas criaturas, que são as melhores criaturas, apesar de tudo, que só saltam para as barricadas quando estas forem físicas e não metafóricas, quando sair para a rua significar, de facto, mudança... e a revolução, enfim! Porque estar empenhado num futuro quen não presta é gastar energia que pode ser gasta num hedonismo que, passivo, é mais frutificante do ponto de vista individual, mas atrofiante quando tira das ruas os melhores. Por mim, acho que esta é uma época de fim de História e de eventual enrugamento social em Portugal. Já só a rua pode julgar e punir os culpados por isto. Já só a violência cultural pode apontar caminho. Já só a morte da economia pode salvar as pessoas, apesar de uns tantos tontos propalarem solução contrária. Bem vistas as coisas, esta merda, como está não presta, mas como está, está a criar gente boa que precisa apenas de uma alteração no paradigma vigente para emergir das suas tocas. Eu teria cuidado se estivesse na pele destes rapazes que hoje mandam.
Rita

Justiniano disse...

Caríssimo J. Gonçalves, permita-me que utilize este seu espaço para enviar um comentário ao Miguel...
- Excelente, Miguel, excelente, sublime!
Por vezes esqueço-me de aqui vir, mas o João Gonçalves, e bem atempado, lá nos vai lembrando...
Pena para mim, pelo que me penitencio.
Um bem haja -