16.12.04

UMA HISTÓRIA PORTUGUESA



O sr. Carlos Silvino começou a depôr no julgamento do processo "Casa Pia". Para além de confessar a autoria de crimes de natureza sexual executados com menores entregues à tutela do Estado, Silvino contou igualmente parte da sua história. Entrou menino para a instituição e ainda menino foi alvo de violações e de tratos afins. Aos catorze anos passou-lhe pela cabeça suicidar-se. Desde funcionários a professores, até ao padre da "casa", todos, segundo o depoente, o sujeitaram, a ele e a outras crianças, às maiores violências de índole sexual. A estratégia da sua defesa passou também por implicar os restantes arguidos deste processo. Esta "história portuguesa" nada tem de edificante nem deve ser motivo de exaltação para qualquer das partes. Ela é reveladora da profunda miséria humana e moral que se esconde nas profundezas de uma sociedade hipócrita, beata e moralista como é a nossa. Pensar-se que esta monstruosidade ocorre dentro das paredes de instituições públicas, criadas precisamente com propósito de proteger e tutelar quem lá está dentro, torna tudo infinitamente mais dramático. Carlos Silvino, simultaneamente vítima e carrasco, é apenas um exemplo infeliz de uma situação demasiado incómoda porque demasiado verdadeira. O Portugal "moderno", começado a construir ainda sob o olhar complacente de Marcello Caetano nos anos 70 e "transformado" pela "democracia" a partir dos anos 80, oculta estas perversões debaixo das promessas de redenção política e cívica de todas as proveniências. São quistos gerados no corpo da própria engrenagem oficial e oficiosa, laica ou religiosa. Não nos iludamos. Continua-se a preparar para a não-vida dezenas de Carlos Silvinos entregues a organismos públicos. A incúria, disfarçada por um assistencialismo primário e demagógico, não garante nenhuma espécie de protecção para estes deserdados, desde cedo abandonados à sua má sorte. Toda a "psicologia" do mundo não cabe no universo torturado destes meninos precocemente envelhecidos. Carlos Silvino, com maior ou menor sinceridade, conta uma história que nos devia fazer corar de vergonha. Porém, no quentinho da época mais cínica do ano e prenhe de "bons sentimentos", quem é que tem tempo para se lembrar do "outro" que se está a afundar mesmo ali ao nosso lado?

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