UMA ESTÁTUA PARA HERODES
Natália Correia tinha destas coisas. Era provocante e provocadora, exuberante, insubmissa, iconoclasta, e com aquele saudável rasgo de loucura que faz toda a diferença entre, por exemplo, um homem e um carneiro. Possuia o dom da indignação, que é uma coisa pouco divulgada nos dias que correm, mesmo que alguns patetas de serviço tomem indignação por lamúria tola e de circunstãncia. Era completamente inconsequente do ponto de vista político, como, aliás, tantos "profissionais" do ofício. Sobre eles, Natália tinha a vantagem do talento e da imaginação. Em plena apoteose do criancismo, deixo aqui uns quantos "blogues" da sua autoria, retirados de um livro que, numa tarde passada na casa de Natália, por cima da Smarta, a falar de livros, ela me ofereceu, "confiando-o a uma leitura inteligente".
Se há pessoas em que o ridículo não transparece é porque nunca foram apanhadas a divertir uma criança.
Apesar de tudo há crianças simpáticas: as maltratadas. São as únicas que testemunham a estupidez dos pais.
Louvemos os maus filhos. Eles dão aos pais a oportunidade de saberem até que ponto são idiotas.
Fazer festas às crianças força à indignidade física porque obriga a curvar a espinha.
A criança é a última tentativa da espécie para tiranizar o indivíduo.
No tirano repete-se a gravidade das brincadeiras infantis.
Quando o filho chama imbecil ao pai, este orgulha-se de lhe dar toda a liberdade.
Pôr um leão faminto no quarto dos brinquedos. Corre-se o risco de que a criança devore o leão.
Filho: bengala para velhote derivada da moral cristã.
Não eduques a criança. Só assim podes prever o imprevisto.
As crianças só se confessam quando brincam aos bandidos e às guerras.
O mal foi Cristo ter dito: "Deixai vir a mim as criancinhas". Ficou coberto de moscas e tomaram-no por um cadáver. Tanto bastou para que se fundasse uma religião.
(Uma Estátua para Herodes, de Natália Correia, Arcádia, 1974)
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