15.7.03

A TRAIÇÃO

No Abrupto encontrei umas belas frases acerca da traição. É um tema recorrente, da política ao amor. Esta noite, ao meu lado, alguém me falou durante umas horas dessa dor mansa, quase vegetal (O'Neill) que consiste em perceber no Outro esse gesto insolente da traição. A traição à confiança e aos afectos, tão dolorosa como a que é feita às convicções, é um golpe dado de alto a baixo do nosso até aí entendimento do mundo. Sem que o queiramos, somos outros a partir do ataque soez da traição. Como se responde ao ataque? Normalmente a surpresa deixa-nos inermes, a surpresa do primeiro. Depois, essa madrasta mal encarada que é a vida, tudo ou quase tudo absorve e, um dia, acordamos nós ao ataque. Para quem gosta de ópera, está tudo lá. Para quem ama a poesia, também. Vou até Wagner para terminar. No final de "As Valquírias", Wotan condena a filha mais amada, Brünnhilde, ao "humano", "desdiviniza-a", isto é, condena-a ao pior dos sofrimentos, o "conhecimento". É para lutar contra o "conhecimento" que Wotan corre e é por isso- por tragicamente "saber" - que coloca Brünnhilde protegida pelo fogo e protegida do "humano". No "Crepúsculo dos Deuses", a última jornada, já Brünnhilde tudo "sabe". E, no monólogo final, somente aspira a abandonar "este mundo de desejo e de sofrimento". Um mundo que se perde, um mundo de traições, a morrer, porque foi "conhecido":

Tudo, tudo
tudo sei,
tudo me foi revelado.
Ouço também
adejar as asas dos teus corvos,
ordeno-lhes que regressem a casa
com a mensagem por que anseias-
Repousa, repousa, oh deus.

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