29.7.03

A HERANÇA II

A propósito de um post que me ocorreu lá para trás, no dia em que começou o golpe de estado em S. Tomé e Prí­ncipe, o Paulo Tavares enviou-me um e-mail que transcrevo em parte, para poder comentar.

A solidariedade com Timor foi descrita como "baba" e "folclores de rua"

Acho isso muito injusto para com as pessoas envolvidas. Certamente que haverá envolvimentos mais ou menos sinceros, mais ou menos sentidos, e mais ou menos esforçados, mas será sempre melhor que a simples indiferença. E mesmo que o apoio prático não tenha coberto tanto quanto os timorenses precisavam, certamente que eles não menosprezaram esse apoio, da forma que o "Portugal dos Pequeninos" fez.


1. Como o Paulo facilmente perceberá, se se der ao trabalho de querer entender, eu utilizei uma caricatura para mencionar o que se passou nas ruas de Lisboa, em Setembro de 1999. De facto, era "outro paí­s", diferente do indiferente de 1975, que descia à rua. O de 75, em geral, esteve-se nas tintas para que a Indonésia tivesse entrado pela ala esquerda da ilha de Timor. O que eu disse é que gostava de ter visto, ou de ainda poder vir a ver , manifestações idênticas por, por exemplo, Angola. Que eu saiba, a miséria, a fome e a corrupção que ali grassam desde 75, não comoveram ainda ninguém tão intensamente. E em Timor, qualquer dia, ninguém quer saber do português para nada. Vai ver.

Os pedidos de desculpa foram classificados como "patéticos"

Concordo que é impossível que os pedidos de desculpa reparem os males praticados. Mas só o(s) destinatário(s) desses pedidos pode(m) julgar se ele é necessário ou não, desejável ou não, útil ou não. Por exemplo, eu vivo actualmente no Brasil, onde existe uma proibição de piadas sobre negros, coisa que durante muito tempo achei um tanto ridícula. "Na prática, de que lhes serve isso", pensava eu, "seria mais útil uma medida concreta, como a criação de cotas para o acesso ao ensino superior ou a cargos públicos, etc". Mas mesmo sobre essa parca medida, relativa às piadas, acabei concluindo que não tenho como avaliar isso. Não sei qual o efeito que isso tem sobre a auto-estima de milhões de pessoas, e sobre o respeito que foram adquirindo. Posso fazer muitas suposições, mas não posso sabê-lo de facto, não posso sentir o efeito, sendo eu branco.


2. Eu não tenho nada contra os "pedidos de desculpa" . Apenas fiz notar que são uma forma singela e já trivial de aliviar a canga da História.

A presença de Portugal em África foi equiparada à presença no Minho ou em Trás-os-Montes

Parece-me muito estranho falar de "presença de Portugal" no Minho ou em Trás-os-Montes, que desde sempre foram parte integrante de Portugal, e onde não consta que haja movimentos separatistas. E admitindo que esta presença, ainda que não seja épica ou gloriosa, não será assim tão terrível, porque seria negativo que a presença em África fosse imbuída do mesmo espírito?


3. O regime que, como sabe, tratava as colónias por "províncias ultramarinas", é que equiparava as coisas, não querendo que se distinguissem estas das "da metrópole". Como, de facto, não estava, nem no Minho, nem em Trás os Montes, o que se seguiu, depois de 1960, é conhecido.

Os portugueses em África foram classificados em bloco como paternalistas e interesseiros

Mais uma vez, parece-me uma generalização excessiva. Mesmo que isso fosse verdade para a maioria, haveria ainda um número significativo que consideravam a África como o lar, mais do que a metrópole.


4. Naturalmente que esses portugueses consideravam as colónias o seu "lar", com tudo o que essa carga semãntica implica. O problema é que, a partir de determinada altura, os autócnes começaram a não gostar mesmo nada daqueles "senhorios" ou mesmo "arrendatários".

A miscigenação foi descrita como imposta por Salazar e resultando em "pretas [montadas] à fartazana"

Acho que o que eu já disse antes sobre generalizações e respeito aplica-se em dobro a esta afirmação. Respeito pelas mulheres africanas e suas famílias, respeito por aqueles portugueses que não encaravam as coisas dessa forma, respeito até por Salazar, que podia ser um ditador, mas não consta que fosse um grosseiro. Também duvido que seja rigorosa essa afirmação simplista de que "Salazar impôs a miscigenação", mas deixo essa questão para quem souber mais de história colonial que eu.



5. Mais uma vez ao Paulo escapou o sentido da metáfora. Concedo que a expressão é forte, mas sobretudo julgo que é realista, e obviamente não generalizadora. A miscigenação fazia parte dos objectivos do regime para as "províncias", justamente por elas serem concebidas como mencionei acima. Porém, a cada português a sua maneira de "miscigenar", naturalmente. E Salazar não era mesmo nada grosseiro: era "portuguesmente" matreiro, apenas. Não se pode ser absolutamente perfeito.

Os retornados das ex-colónias foram um "resultado (...) despejado em contentores nos cais de Lisboa"

Uma vez mais, há uma questão de elementar respeito pelas pessoas. Pessoas não são "resultados", e pessoas não são "despejadas em contentores".


6. O Paulo não fixa imagens visuais de determinadas épocas? Pense bem qual é a que melhor ilustra a chegada dos chamados "retornados" a Lisboa e que, graças aos primeiros governos de Mário Soares, se integraram sem grandes problemas na "metrópole".

"(...) uma profunda e terrível miséria moral e material, sem fim."

Também aqui o "Portugal dos Pequeninos" faz afirmações categóricas, definitivas e totalmente indiferentes aos sentimentos das muitas pessoas que têm consciências dos problemas existentes, mas que têm ainda esperança.


7. Eu também tenho uma "desesperada esperança" de que, um dia, sem palavrosos, nem corruptos, se possa minorar o sofrimento de milhões de africanos que, um dia, para sua infelicidade, foram "dos nossos".



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