17.7.03

UMA CARTA II

Corria o ano de 1968. Cerca de trinta anos antes, por ponderadas razões de Estado, o mais político dos dois amigos de Coimbra, da Universidade e da residência dos Grilos, decretava que a partir dali os seus caminhos se apartavam. António disse a Manuel qualquer coisa como isto: "eu sou o Estado, tu és a Igreja, entre nós corre-se hoje uma cortina e seguimos caminhos separados". Sem o saber, 1968 seria para António o começo do fim. Nesse Verão, como em todos os verões anteriores, instalava-se no Forte de São João do Estoril, pagando do seu bolso a ocupação do espaço ao Exército. Ali recebia ministros e amigos, poucos. De vez em quando, ia até à casa do Vimieiro ver as terras e o estado das vinhas. Foi no átrio do Forte que, deixando-se caír numa cadeira de lona para ler o jornal, que António é traído pelo utensílio e tomba, batendo com a cabeça no chão. Ao barbeiro, à Maria e a outros mais tarde, diz que não foi nada, apenas que sente umas dores de cabeça incómodas. Dois anos depois, António morria no seu recato de província de S. Bento, julgando-se ainda Presidente do Conselho. Em Abril de 1968, Manuel enviava ao seu amigo uma carta, a pensar no seu aniversário, a 28. Trata-se de um documento pessoal, bem escrito, que celebra a amizade entre duas das mais poderosas figuras do País no século XX, e onde se pressente a inexorável aproximação do fim.

António:

Não quererias dar-me as tuas sopas no jantar do próximo dia 28? A Providência já nos levou o Carneiro de Mesquita, cujo aniversário da morte passou ontem. Estamos sós os dois, e podemos dizer com os discípulos de Imaúz que está a cair a tarde. Se não destinaste ainda o teu dia, não seria bem aquecer-nos à fogueira antiga?

Teu sempre Manuel


(Carta de 24.4.68 de Manuel Gonçalves Cerejeira a António de Oliveira Salazar, cit. por Franco Nogueira in Salazar - O Último Combate (1964-1970), Vol. VI, Civilização Editora)

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