UMA CARTA
Ando a ler a biografia de Marguerite Yourcenar, de Josyane Savigneau (Difel). Comemorou-se outro dia o centenário do seu nascimento e os jornais falaram abundantemente dela. Gostava muito de Portugal e do Algarve, em particular, local onde não se importaria de viver. Passou por cá umas vezes, em Lisboa, no Porto, onde conheceu Eugénio de Andrade, e amava naturalmente Sintra. Por ocasião da reedição das Memórias de Adriano pela Ulisseia, no princípio dos anos 80, esteve numa conferência na Gulbenkian ao lado de David Mourão Ferreira e de Agustina Bessa Luis, se a memória me não falha. Gostava muito de viajar - era verdadeiramente uma nómada - ao contrário do que parecia sugerir o "recolhimento" em Petite Plaisance, na ilha perdida dos Montes Desertos nos Estados Unidos. Desapareceu em 1987. Pelo meio da dita biografia, encontrei excertos de uma carta dirigida à sua tradutora italiana que, valendo o que vale, aqui deixo em parte, com lembranças para os Estudos sobre o Comunismo, pois referem-se à sua passagem, em 1962, pela então Leninegrado, durante três dias.
"Essa experiência tão breve teve sobre mim (...) um efeito que eu não esperava, e que é em suma, no que me diz respeito, o de um infinito desencorajamento. Que esperava eu? Não contava certamente entrever um Eldorado, mas, reagindo sem dúvida contra a imbecil propaganda anticomunista da América, com os seus clichés infantis, eu esperava sem dúvida encontrar um mundo um pouco mais novo, mais "vital" porventura, mesmo que esse mundo nos fosse hostil ou estranho. O que eu encontrei, desde a aurora do primeiro dia quando entrevimos os funcionários russos abordando o barco no meio do nevoeiro, e até à noite branca do terceiro dia em que costeámos longamente e de muito perto a fortaleza de Kronstadt emergindo do mar com a sua cúpula de igreja desafectada e as unidades da esquadra em torno dela, foi muito simplesmente a Rússia de Custine, a terna mescla de rotina burocrática, de suspeita do estrangeiro, de deixar-andar já oriental e de prudente desconfiança, e essa tristeza inerte e quase sufocante que é frequentemente a do romance russo, e que eu não esperava encontrar (...); as multidões vindas das províncias, desfilando em grupos organizados no imenso Ermitage, olhando vagamente as suas obras de arte de séculos e países situados tão longe delas, e esse camponês que, de pé diante de um Cristo de Rembrandt parecia rezar (...); e, sobre a escadaria de honra, de um monumental barroco italiano, mas da época má, quer dizer datando de Alexandre I mais do que de Catarina, debaixo dos pés das multidões que sobem e descem os seus degraus de mármore (...) um fragmento humilde e escandaloso de acessório feminino que pertencera a qualquer viajante demasiado fatigada para dar pela sua perda, um pedaço de pano ensanguentado que ninguém se dava ao trabalho de afastar com a biqueira do sapato para qualquer canto escuro, e ainda menos de se baixar para pô-lo de parte."
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