3.4.08

«TEMPOS DE INCERTEZA»



1. Agradeço a um anónimo, a David Oliveira, a Nuno Mendes, ao Fado Alexandrino, a Maria Teresa Mónica, ao Eduardo Pitta, à Carla, ao Tomás Vasques e ao Pedro Aguiar Pinto a resposta pronta ao pedido do post anterior.


2. O texto da Constança Cunha e Sá é duplamente relevante já que avança ao arrepio do "correcto" jornalístico em vigor e repõe, de uma maneira insuspeita, a necessidade de uma reflexão séria sobre o papel da religião - no caso, da católica, nitidamente a maioritária entre nós - nestes "tempos de incerteza". Ao contrário daqueles que escrevem em abundância sobre a matéria, em jornais e em blogues, tão inchados de certezas e da "infalibilidade" das respectivas convicções "laicas", o cristão é alguém que está sempre a caminho, um nómada, um peregrino que dirige toda a sua vida para o futuro, que rejeita o conforto do quentinho "presencista" e, sobretudo, que duvida. O caminho do cristão obriga-o permanentemente à chamada "responsabilidade da esperança", como se pode ler na primeira Epístola de Pedro. E essa responsabilidade é simultaneamente pessoal e colectiva. A "Igreja deve estar onde o humano acontece", escreve a Constança citando o presidente da Conferência Episcopal Portuguesa. Nunca esteve, aliás, de outro modo.


3. «Tempos de Incerteza»


por Constança Cunha e Sá, editado no jornal Público de 3.4.08


«A reeleição do arcebispo de Braga, D. Jorge Ortiga, como presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) foi, se se quiser, a gota de água. Usando uma terminologia que se costuma aplicar ao Partido Comunista, o Diário de Notícias garantia, no dia seguinte, que a manutenção no mesmo cargo do "bispo que mais tem afrontado o Governo, nos últimos anos" confirmava a vitória da "linha dura" da hierarquia católica. Como seria de esperar, D. Jorge Ortiga correspondeu adequadamente a este tipo de expectativas: afirmou que "o Estado democrático não pode ser militantemente ateu"; referiu a "inaceitável exclusão da presença católica dos ambientes públicos e políticos"; exortou os católicos "a encetar acções tendentes a mostrar que nunca irão abdicar dos seus princípios"; e, como se tudo isto não bastasse, ainda se deu ao luxo de invocar a implantação da República "para reconhecer que os acontecimentos adversos suscitaram coerência e fidelidade". É verdade que D. Jorge Ortiga afirmou também que a presença católica não se deve impor "pela lógica dos comportamentos agressivos ou da ambição dos princípios mas pela diferença do amor", acrescentando que a Igreja "deve estar onde o humano acontece". Infelizmente, estes meandros da teologia interessam pouco aos "laicos de serviço", sempre prontos a denunciar a ingerência da Igreja e a defender a natureza inviolável do Estado.Esta separação radical, determinada pelo espírito do tempo, deixa ao Estado o monopólio do espaço público, remetendo a Igreja para o domínio privado, no qual a sua intervenção se limita a proclamações doutrinais que se dirigem apenas ao conjunto dos seus fiéis. Esta lógica que coloca a Igreja numa redoma, isolada da sociedade e do homem, ignora a aspiração "universal" de qualquer religião e a natureza pública do seu testemunho. Não por acaso, essas declarações doutrinais que supostamente só dizem respeito aos católicos são abundantemente comentadas - e ainda bem - por todos os que, embora não fazendo parte da Igreja, se sentem na obrigação de as analisar. Basta lembrar as inúmeras polémicas que acompanham invariavelmente as posições do Vaticano sobre determinadas matérias como a homossexualidade, o uso de métodos anticoncepcionais, o casamento dos padres ou o acesso das mulheres ao sacerdócio, para referir apenas as mais recorrentes. O interesse suscitado por estas questões mostra, ad contrarium, que mesmo os seus críticos mais contundentes dificilmente conseguem admitir que a actuação da Igreja se insere numa esfera meramente privada com a qual nada têm a ver. Em contrapartida, o facto de D. Jorge Ortiga ter dito que o "Estado democrático não podia ser militantemente ateu" (o que é razoável) ou ter considerado "inaceitável" a "exclusão da presença católica dos ambientes públicos e políticos" (o que se compreende) provocou, entre nós, como já é habitual, um ensurdecedor alarido. Aí estava a Igreja, mais uma vez, a "afrontar" o Governo. A exigir, mais uma vez, privilégios que fazem parte do passado. E a imiscuir-se, mais uma vez, onde não era chamada. Pelo meio, houve inevitavelmente quem lamentasse esta indesejável colagem à Igreja espanhola e à sua indecorosa oposição ao Governo de Zapatero. Mas o mundo, como se devia saber, não se esgota na Península Ibérica.Nos últimos tempos, a chamada "ofensiva" da religião já não se refere, apenas, ao florescimento de uma vaga espiritualidade que, há uns anos, se reflectia no sucesso de algumas seitas ou na importação de um orientalismo de trazer por casa, embrulhado no aperfeiçoamento pessoal e numa gama de "receitas" que levavam à "felicidade". Ao fracasso das ideologias e ao clima de insegurança juntou-se o "fundamentalismo" islâmico, que impôs ao mundo desenvolvido e às sociedades de bem-estar o "retrocesso" da religião. A sharia que o Ocidente tolera, ao ponto de o arcebispo de Cantuária pretender integrá-la na lei britânica, não deixou de abrir um caminho favorável ao regresso da religião numa Europa laica e desenvolvida. Num livro, publicado em Portugal, no ano de 1994, sob o título A Igreja e a Nova Europa, o então cardeal Ratzinger, recusando uma análise "simplista" sobre esta matéria, não deixava de concluir o seguinte: "O islão, seguro de si, exerce sobre o Terceiro Mundo um fascínio muito mais forte do que o cristianismo, a que falta paz interior." Dois anos mais tarde, na Universidade de Ratisbona, o mesmo Ratzinger, já como Papa Bento XVI, exortava as religiões do Livro a ocuparem o espaço deixado vazio pelas ideologias modernas e a tirarem partido destes tempos de incerteza e de mudança para regressarem ao centro da vida política - o que foi interpretado como uma legitimação da "cruzada" da Igreja espanhola contra o Governo de Zapatero. A mudança, no entanto, não se fez sentir apenas em Espanha. Em Itália, a Igreja deixou cair o primeiro-ministro Romano Prodi. Na Áustria, o arcebispo de Viena, num artigo publicado do New York Times, decidiu repescar o direito natural de inspiração divina por oposição às leis "demasiado" humanas que são aprovadas num Parlamento. E, por último, em França, no berço do Estado laico e republicano, o presidente Sarkozy surgiu como um baluarte da religião, defendendo as suas virtudes cívicas, ao mesmo tempo que afirmava que a moral laica se pode esgotar quando não é apoiada numa esperança que realiza as "aspirações do homem ao infinito". Pode-se dizer que tudo isto não é mais do que um fenómeno passageiro - principalmente se levarmos em linha de conta o divórcio que existe entre as exigências da religião e o modo de vida europeu. Como se pode dizer também que existe uma incompatibilidade de fundo entre o pluralismo da democracia e a Verdade única que emana de Deus. Mas não deixa de ser sintomático que este tempo de incerteza aliado a um laicismo exacerbado possa pôr em causa uma das principais conquistas do mundo ocidental.»

11 comentários:

António Pereira disse...

Excelente crónica.
Parabéns à Constânça Cunha e Sá. E ao João também, que a publicou aqui. E aos leitores que lhe eviaram, a crónica, também!

Cumprimentos a todos

joshua disse...

Bela e pertinente reflexão! Mas quem é que poderia renegar-te, ó João! A resposta foi dada e não foi nada avara, como dás conta.

Abraço joão-paulino II

PALAVROSSAVRVS REX

Daniel Azevedo disse...

Caro João Gonçalves

Não sei se concordo ou discordo do que diz a crónica da dita senhora, no entanto gostaria de lhe fazer um reparo.
Quando o João Gonçalves diz que um cristão é alguém que "sobretudo duvida" está referir-se à dúvida no sentido de dentro para fora? Isto é no sentido de que o que eu acredito é que é a verdade?
Aliás para um cristão a verdade não está em Cristo? Se eu acredito que a verdade está em Mahomé ou Buda , então não sou cristão.
Em que é que um cristão duvida? Na crença do outro que não partilha da sua cença! Aliás durante muito tempo eliminou-os fisicamente!

Uma última observação: se eu não tenho fé em Cristo, porque tenho que aceitar que o meu governo faça leis que satisfaçam uma moral que não é a minha. Não terei eu o direito à duvida?

Cumprimentos

Anónimo disse...

O artigo de Constança Cunha e Sá está bem elaborado mas os argumentos aduzidos partem de pressupostos falsos para servir as conclusões pretendidas.

Antes de mais, uma frase que na sua simplicidade traduz todo um programa: "A César o que é de César e a Deus o que é de Deus". Irrefutável para os cristãos, porque está na Bíblia!

O estado laico contemporâneo não tem de privilegiar nenhuma religião sob pena de não ser laico. Claro que haverá quem pretenda regressar às monarquias de direito divino, mas isso é outra questão. O espaço da religião, no estado laico, é privado e não público, salvo algumas manifestações consuetudinárias, reguladas pela Concordata, aliás já esta um instrumento particular em que se reconhece um papel especial da Igreja Católica dadas razões de natureza histórica (decorrentes da tradicional aliança do Trono e do Altar) e de natureza estatística (o hábito de os portugueses se declararem maioritariamente católicos nos inquéritos).

A força atribuída ao islamismo não decorre "ab initio" da religião. Os islamistas mais fanáticos importam-se pouco com o cumprimento dos preceitos. O "fascínio" do islamismo decorre tão só - e já não é pouco - do facto da religião ter vindo substituir a política em países em que não é possível exercê-la. Daí a sua sedução nos regimes ditatoriais ou enfeudados ao "colonialismo" ocidental.

O pan-arabismo de Nasser deu lugar
à República Islâmica de Khomeini, e a política anglo-americano-judaica no Médio Oriente fez surgir a Al-Qaeda, o Hamas, o Hezbollah, etc.

Não pretendo ocupar muito mais espaço, ainda que o artigo o justificasse. A autora está no seu direito de se proclamar (não sei se o é) uma católica fervorosa ao defender a "Verdade única que emana de Deus" (de qual?). E Ratzinger, que é um homem inteligente, e que eu aprecio por possuir vasta biblioteca, tocar piano e ter um gato, mais não faz do que desempenhar bem o papel para que foi eleito. Mas não se confunda a moeda do tributo, sob pena de voltarmos a mergulhar numa teocracia.

Anónimo disse...

o lixo humano socialista afunda esta miserável ré-pública

Nuno Castelo-Branco disse...

É um tipo de discussão que encheria centenas de volumes de reedições da Enciclopédia Britânica. Tendo os factos históricos hoje conhecidos liquidado a lenda da aliança entre o trono e o altar - durante o liberalismo a igreja estava muito subordinada ao Estado e não o contrário -, certos sectores político-partidários querem provocar um novo confronto que não tem qualquer interesse para a resolução dos nossos problemas nacionais. Aproximando-se o centenário da "dita cuja", as intervenções subirão de tom e as respostas não tardarão. Não praticando qualquer tipo de religião, reconheço o papel fundamental da Igreja na construção das nossas sociedades ocidentais e daquilo que foi conquistado, não abdico. Se certos sectores querem reacender o desastre da guerra anti-religiosa do Afonso Costa, sabemos de antemão quem sairá vencedor. Depois, não se queixam.

Anónimo disse...

Frontalidade no jornalismo, precisa-se. Não se esqueça que o artigo deriva da estratégia do Governo querer conquistar para si o exclusivo do espaço público. A uma acção do Governo temos a natural reacção da Igreja. Vendo bem, dado o fundamentalismo assumido por outras religiões que já amedrontam e vergam alguns governos, a atitude do nosso parece-me vesga e estranha aos interesses do país. CCS afirma-se, mais uma vez, como uma jornalista inteligente, culta, frontal e corajosa.

Anónimo disse...

São uns 50 (ou 150(?)os países do planeta que não respeitam a liberdade religiosa estatuída pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. A que vem isto perguntar-se-á. A que desde a China ao Sudão passando por Tibete e Iraque( onde só os «católicos» não são bombistas nem têm milícias particulares que os defendam ) é atrocidade vulgar destes «tempos negros» matar a liberdade dos filhos de Deus. Mas ... e ... entre nós ... (não falando nuestros hermanos) ? Relegam-se católicos pra o esconso de sacristias bafientas como ante do Vaticano II e não os deixam arejar ideias a mentes abrindo janelas de liberdade verdareiamente livre -- como o Bom Papa João propunha «falem, falem, que algo de novo acontecerá!» Culpa também de muito dito «católico» quedar-se mudo e tartamudo calculando níqueis. O Governo no seu melhor deixa-os sem pompa pelas Fátimas e Mecas de hoje em multidões lacrimejantes. E a que vem isto. A que ser de Cristo não dá pra calar Que a grande Alegria da Notícia Nova é pra ecoar. Quem encontro a mais preciosa das pérolas por certo não vai segredar isso a ouvido de desconhecida vizinha -- mas GRITAR SOBRE TELHADOS! Mundo sem Cristo e no entanto DE CRISTO!

FNV disse...

Hoje ( 6ªfeira) não há citação do VPV pois não? Pois é: é preciso ir para a rua e deixar as choraminguices.

João Gonçalves disse...

Filipe: não seja tão precipitado nos juízos.

Anónimo disse...

Caros

A CCS, apenas avisou que não pode o laicismo ter um carácter absoluto na regulação da vida do homem nem, muito menos tentar domar-lhe a espiritualidade que lhe é inerente.
As religiões apenas são a historia do caminho do movimento da divindade ante o homem ou vice versa.
As três religiões proféticas e as restantes misticas, são na sua essencia, isso.
Não devemos afrontá-las porque julgo que com isso negamos a nossa espiritualidade e a nosa humanidade.
O resto....fundamentalismo...Al Quaedas...Bun Laden....e outros logrdouros das nosssas justificações habilmente construídas por uma propaganda cientificamente insidiosa....são apenas aderêços deste tempos de cobiça e em fim de estação.
De resto o laicismo de Portugal é importado de uma europa em fim de estação.
Quem integra a governação são meros capatazes às ordens de uma aristocracia que se esconde atrás de grandes princípios como essa da declaração universal dos direitos do homem...é à sombra dessas ideias já situadas no absoluto de nós que se vão tecendo as maiores vilanias e crimes sociais do nosso tempo.
A CCS, creio que está a dar muita importância aos capatazes que pretendem governar a nossa terra. Ela que se não preocupe com eles ....mas sim....que mire os antros da europa onde se refugiam as seitas gordas que querem viver ...desbragadamente.
Nós os portugueses sabemos mais do que eles ...e apenas esperamos o momento para nos rirmos deles.

cumps