26.12.06

20.13, O PURGATÓRIO


Venho do filme de Joaquim Leitão, 20,13. Tem a estrutura da tragédia, com coro, música, unidade de espaço e de tempo a preceito. A coisa resume-se à noite da consoada, passada num aquartelamento do exército português em plena guerra colonial. Moçambique, 1969. Num helicóptero chega inesperadamente a mulher do comandante, o capitão Correia (na foto). Já lá está outra mulher, a do alferes médico, um casal sem sentido. A segunda figura do quartel é o alferes Gaio, um "revoltado" da metrópole a cumprir o serviço obrigatório. O capitão lembra o oficial japonês de Merry Christmas, Mr. Lawrence ou o capitão do barco em Querelle. Honra, dever, orgulho, patriotismo, um casamento falhado com uma filha-família e um affair de caserna com o cabo enfermeiro. A mulher perturbada do alferes médico tem aparentemente uma fixação pelo capitão atormentado e não hesita em matar para que isso fique claro. Para proteger um assassínio, outro assassínio e a imolação final do capitão que procura deliberadamente a morte numa acção militar. Tudo termina pelo fogo, pelos tiros e pela arma branca. O alferes Gaio sabe a verdade por uma carta que lhe deixou o capitão. A hierarquia militar deseja heróis, mortos em combate, e não "larilas". A carta e a história de Gaio desaparecem num pequeno lume ateado num cinzeiro. O tenente-coronel profere a frase decisiva do filme: "no exército português não há maricas nem oficiais que matam soldados". Há uma "história" na guerra colonial portuguesa que ficou por fazer e que esta frase singular e "oficial" resume. Apenas a ficção - uma tão corajosa quanto medíocre, de Guilherme de Melo ("A sombra dos dias", da Bertrand) e outra mais cruel e "realista" de Eduardo Pitta ("Persona" - ficções, da Angelus Novus, particularmente "Pesadelo", a páginas 27 e seguintes) - tocou este pathos, já que o regime sempre se recusou a aceitar "escândalos", mandando para o "mato" ou para a "metrópole" os casos mais bicudos. Fizeram-se inquéritos e mais inquéritos que ficaram apenas na memória dos seus principais protagonistas. A ditadura tinha destas subtilezas: podia fazer-se tudo desde que não se soubesse. O filme de Joaquim Leitão tem a configuração da tragédia clássica precisamente porque existe um reconhecimento, uma descoberta fatal, um "ágon", uma catástrofe. Toda aquela gente está condenada. Os soldados, à morte em campo aberto, os protagonistas (regime colonial incluído), à impossibilidade de lidar com a verdade. Um capitão de boas famílias e do exército colonial português não pode amar um cabo enfermeiro, tal como a mulher de outro homem não pode amar um homem casado e tal como o regime não pode aceitar a realidade. Por isso matam e se matam. A renúncia final ao mundo da mulher culpada é a única redenção consentida.

7 comentários:

Anónimo disse...

Mas, meu caro Sr. Goncalves, no Exercito Português tanto existiram Maricas como Praças assassinados por Oficiais, Sargentos ou outras Praças...

E creeia-me de que (a maioria) nunca souberam ou saberão o que é ou como obter a redenção...

Anónimo disse...

Visitem O Último Primata

É muito bacano

Um trabalho com alto rigor científico

http://oultimoprimata.blogspot.com/

Anónimo disse...

Província de Cabo Delgado / Mueda / Cemitério de militares portugueses:

Em Mueda em tempos capital da guerra, uma das campas dos militares portugueses que ali defenderam o último domínio europeu em África. Os primeiros europeus com a ciência de ali chegar, os últimos destinados a sair. Joaquim e outros, ali continuam hoje, ano da graça de 2005. Luta, guerra e morte, para quê? Porquê?
“ Uma visão da história militar de quem combateu uma guerra destinada a ser perdida”
Extratos: regresso a Moçambique.

todos disse...

tem legendas? se não tem, não vou ver pq não percebo nada do que dizem.

todos disse...

tem legendas? se não tem, não vou ver pq não percebo nada do que dizem no cinema português.

Anónimo disse...

Este é um belo e competente filme. Mas inútil na relação do público nacional com o seu cinema. E não adianta dizer mais nada, basta reparar no comentário anterior. As coisas são o que são!

todos disse...

PP espero que tenhas percebido as minhas razões. Não é que não entenda os discursos, preciso é de ouvir o que dizem para os entender. As condições de audio dos diálogos são um autêntico horror. Há excepções, mas na esmagadora maioria mantém-se essa falha.