Há cem horríveis dias que somos supostamente governados por Santana Lopes. Graças à amabilidade "estabilizadora" do Dr. Sampaio, mergulhámos de novo no absurdo. Quase que a propósito, foi lançado esta semana o livro As Farpas - crónica mensal da política, das letras e dos costumes, de Eça de Queiroz e de Ramalho Ortigão, uma reedição oportuna da 1ª edição das ditas, de 1871/1872, organizada pela competente mão de Maria Filomena Mónica, com notas, tabela onomástica e glossário de Maria José Marinho (Principia). A apresentação coube a Marcelo Rebelo de Sousa que, para a ilustrar, recorreu, com a habitual anti-estultícia, a trechos do livro que, adaptadamente, podiam ter sido escritos agora. Na realidade, o país continua tão absurdo como naquela altura e os "objectivos" a que se propuseram Eça e Ramalho merecem ter continuidade, nem que seja através da releitura desta extraordinária prosa. Numa carta de 1878, em que procurava traçar um "retrato" de Ramalho Ortigão, Eça "explicava" "As Farpas". O primeiro fim das "Farpas"" foi promover o riso. O riso é a mais antiga, e ainda a mais terrível forma da crítica. Passe-se sete vezes uma gargalhada em volta de uma instituição, e a instituição alui-se; é a Bíblia que no-lo ensina sob a alegoria, geralmente estimada, das trombetas de Josué, em torno de Jericó. (...) As "Farpas" tinham inteiramente outro processo: - era obrigar a multidão a ver verdadeiro. Um grande pintor de Paris dizia-me, o ano passado: - A multidão vê falho. Vê, em Portugal sobretudo. Pela aceitação passiva das opiniões impostas, pelo apagamento das faculdades críticas, por preguiça de exame - o público vê como lhe dizem que é. Eça continua. Eu digo: é útil balar com os carneiros; ganha-se a estima dos nédios, as cortesias dos chapéus do Roxo, palmadinhas doces no ombro, de manhã à noite uma pingadeirazinha de glória. Mas ir sacudir, incomodar o repouso da velha Tolice Humana, traz desconfortos; vêm as caluniazinhas, os odiozinhos, os sorrisos amarelos, a cicuta de Sócrates às colheres. Em suma, estes dois amigos da mais ilustre das nossas "gerações perdidas", queriam "obrigar a ver verdadeiro" e a "fazer rir do ídolo, mostrando por baixo o manequim". Por isso As Farpas, como escrevia Eça no primeiro artigo da colectânea, visavam "apontar dia por dia o que poderíamos chamar o progresso da decadência". Nesse sentido, e descontando aquilo a que Filomena Mónica chama de "certo desiquilíbrio", traduzido na circunstância de "alguns artigos " resistirem "ao tempo de forma sublime" e outros serem de "uma grosseria infantil", estas crónicas do século XIX constituem, ainda hoje, o nosso maior blogue.
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