Há um autor a que volto muitas vezes, Henry Miller. Já aqui o mencionei por diversas vezes. Numa pilha de livros acumulados na "mesinha de cabeceira", um objecto delicioso em vias de extinção ( é "politicamente correcto" dormir rente ao chão), descobri esta manhã Viragem aos Oitenta, numa tradução da Fenda. Apetecia-me reproduzir o texto todo. Não é o sumário de uma vida, mas pode ser uma pequena gramática da existência. Sólido, gracioso, insolente e perturbador, Miller é um dos grandes escritores do século XX, um homem cosmopolita e uma alma verdadeiramente livre. Não vai ser fácil comprendê-lo neste "novo" e já precocemente envelhecido milénio.
Se é jovem em anos mas já cansado em espírito, já a caminho de se transformar num autómato, pode fazer-lhe bem dizer ao seu chefe - entredentes, claro - "Vai-te foder, Jack! Tu não és o meu dono". Se você consegue assobiar, se se excita com um rabo atraente ou um lindo par de mamas, se consegue apaixonar-se uma e outra vez, se consegue perdoar aos seus pais o crime de o terem trazido ao mundo, se está satisfeito por não ir a lado nenhum, viver cada dia à medida que vem, se consegue perdoar e esquecer, se consegue evitar tornar-se azedo, rabugento, amargo e cínico, homem, você já tem meio caminho andado!
São as pequenas coisas que contam, não a fama, o êxito ou a riqueza. No topo, há muito pouco espaço enquanto que em baixo há muitos como você, não há enchentes nem ninguém para o provocar. Não pense, nem por um momento, que a vida de um génio é feliz. Longe disso. Seja grato por ser ninguém. (...) Com raras excepções, as pessoas não se desenvolvem nem evoluem; o carvalho permanece um carvalho, o porco um porco e o asno um asno. (...) Tudo o que realmente temos é o presente, embora poucos o vivamos. Não sou pessimista nem optimista. para mim o mundo não é nem isto nem aquilo mas todas as coisas simultaneamente, e a cada um segundo a sua visão. (...)
Verdadeiramente decrépitas, cadáveres ambulantes, por assim dizer, são as pessoas de meia idade, os homens e as mulheres da classe média que estão presos nas suas rotinas confortáveis e julgam que o status quo durará para sempre ou então têm tanto medo de que assim não seja que já se retiraram para os seus abrigos mentais enquanto esperam a catástrofe. (...)
O que aflitivamente falta no mundo actual é grandeza, beleza, amor, compaixão e liberdade. O tempo dos grandes indivíduos, dos grandes líderes e dos grandes pensadores já passou. No seu lugar estamos a criar embriões de monstros, assassinos, terroristas: a violência, a crueldade e a hipocrisia parecem inatas. (...)
Quem se leva a sério está condenado.
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