20.2.08

O RETRATO


O Miguel - e, pela primeira vez, não concordamos - desanca a chamada "geração de 70" num estilo delicioso que só a evoca. Fá-lo a dobrar. Porquê esta inesperada acrimónia contra aqueles que ficaram conhecidos como os "vencidos da vida"? Porque não gostavam do "povo"? Porque não apreciavam a inépcia do regime? Porque desconfiavam dos nossos pobres monárquicos, como lhes chamou, depois, Salazar? Porque perceberam que, após 1580, pouco mais temos andado a fazer do que a pastar a vaca? Porque intuiram que, apesar do desejo larvar de um "salvador", isto jamais se salvaria? Porque, no realismo do excesso das suas heroínas e dos seus heróis romanescos, retrataram uma sociedade oca e hipócrita que se perpetuou? Porque, no seu desespero poético-político, levado ao extremo, um deles, Antero, desistiu sentado num banco de jardim em Ponta Delgada? Porque o mais brilhante deles todos, Eça, execrava a "pátria" ao mesmo tempo que a representava lá fora? Porque, num dos poucos acessos aproveitáveis, Junqueiro berrou, feito louco, o "finis patriae"? Porque Oliveira Martins tentou e falhou melhor no governo, como que antecipando o "tenta e fracassa, tenta outra vez e fracassa melhor" do Beckett, esse genial leitor da malaise contemporânea sempre à espera do que não sabe por que espera? D. Carlos, amigo de Ramalho, seria seguramente um homem da "geração" não fosse a sua posição institucional. Diplomata, cosmopolita e livre, desconfiado dos monárquicos que ornamentavam o regime, o rei foi um verdadeiro monumento político aos "vencidos da vida". Não acabou ele abatido, pelas costas, pela "piolheira", pelos libertadores do "povo"? Não, Miguel, os homens da "geração de 70" já encontraram um país delapidado e, por isso, diminuído e ridículo que persiste. Sem eles, a evidência do primitivismo do Estado e da sociedade jamais teria sido tão clara como na luz e sombra das palavras, mais de sofrimento do que de gozo, dessa "geração" perdida. Não é por causa dos "vencidos da vida" - essa casta lucidamente amargurada tão afinal consciente da nossa inconsciência - que nós estamos como estamos. Os verdadeiros "vencidos da vida" somos nós. Eles limitaram-se a tirar o retrato.

10 comentários:

Anónimo disse...

Não sei quem é o Miguel, mas a sua catilinária contra a Geração de 70 mostra que nada compreende de literatura. Não é esta que é responsável pelo país real, nem estou certo de que este fosse responsável por aquela.

Se a literatura tivesse a responsabilidade de todos os males do mundo, então talvez houvesse que extingui-la. Os maiores nomes das letras ao longo da história foram lucidamente pessimistas. Também existiram escritores optimistas, a maior parte deles "engagés" a determinados regimes, mas o que fizeram foi política e não literatura, e isso não me interessa.

joshua disse...

O País, verdadeiramente, como sempre acontece, no seu grosso, passou ao lado da Geração de 70 e esteve além dos seus diagnósticos e diatribes, sonhos e aspirações perdidas.

O que acabo de ler do Miguel poderia ser escrito da Teoria Geral da Relatividade nas suas consequências práticas menos desejáveis. O estilo é bom. O alvo é Pato inerme, morto e enterrado que não pode responder.

Provavelmente, graças à sanguinidade fluente da Bloga, o mesmo País que grossamente ignorou a Geração de 70 e os seus ulteriores intérpretes mais fanáticos, poderá não passar ao lado do mesmo Miguel, ou de ti, João, e de quem mais lúcida e ousadamente, nos autopsie e acorde e electrocute de Real, no meio de esta deprimência de anti-valores e amorfia geral.

Não vale a pena condenar um feixe de escreventes e intelectuais mortos por coisas escritas e ditas bem estimulantes na forma e no conteúdo (vergastadas morais que nenhuma guerra, invasão ou bombardeamento nos ministrou), quando outros puderam agir somente segundo receitas do Tempo e Modas dele, do mesmo Tempo, com os seus enganos e vícios, com as suas ilusões ideológicas também.

Aliás, a culpa de esta merda toda foi em primeira mão dos Romanos quando se lembraram de medir forças com este Limite Ocidental e seus íncolas bebedores de água. Era, afinal, um Limite. E quando, fazendo-o, venceram. A resistência dos de Viriato era um aviso: é inútil, não passaremos disto.

PALAVROSSAVRVS REX

Anónimo disse...

Não estou certo-certo, mas Antero de Quental - afinal o autêntico vencido da vida - foi sim da «geração de 70», mas não fez parte do grupo dos «vencidos da vida».
Quanto ao seu texto, João Gonçalves, subscrevo-o absolutamente.

Anónimo disse...

Ahh, e já agora, talvez ilustrando o que acabo de escrever, veja-se a fotografia que MCB reproduz no seu texto : Antero, não consta.
Porquê, não sei.

Anónimo disse...

A avaliar pelo que conheço da Geração de 70 apenas dá para perceber que, a seu tempo, não poderiam deixar de ser pessoas que viviam a milhas do país real. Embrutecidos pela mimalhice de uma exígua burguesia do séc. XIX, dedicaram-se a estabelecer este sentimento de indignidade que se tornou, de facto, numa indignidade cínica e prostrada, onde a filha-de-putice, a corrupção e o deixa andar florescem numa postura de "morra a marta mas morra farta". Só que esta "marta" é a nação. E não gosto de a ver fugir entre os dedos dessa ociosidade ambulante e peneirenta - sabe-se lá porquê influente - hoje na pele de uma esquerda caviar ligeiramente toxicodependente. Perante este género de sumidades inúteis declaro-me o mais franquista possível.

Anónimo disse...

Talvez o Miguel não se chame assim por acaso,e o Miguelismo tão bem descrito (por muito que lhe custe) no "Portugal Contemporâneo" lhe agradasse mais. Há nos "Vencidos" uma curiosa mistura de cepticismo e corrosão sobre o país e as elites de então,e de esperança e procura de saídas para o beco em que estávamos metidos com os medíocres rotativistas. Mas sempre se tem avançado qualquer coisa,apesar desse espírito que se mantem. Tentemos que a lucidez e a consequente amargura sobre as limitações de se nascer português não anulem a talvez improvavel ternura pela terra e algumas das suas gentes,e a modesta esperança que se possa ainda fazer alguma coisa de jeito por aqui.

Combustões disse...

Não se trata de literatura, do estilo e criação, mas de um modelo e de uma anti-Paideia: aquela que se refastela no mórbido gozo em calcinar. O texto do João é excelente e faria inveja a um Saraiva. Desta matéria creio podermos continuar a falar, pois o típico "intelectual" português (gauchiste, desdenhoso e álacre) está já lá todo nessa geração. A literatura portuguesa teria sido mais pobre sem essa Geração, mas mais pobre ficou, desde então, a nossa capacidade para sair da periferia. O que tentei dizer foi: o médico não deve insultar o paciente, deve curá-lo. Ora, a Geração de 70 lavrou diagnóstico terminal e acelerou a morte do doente.

Unknown disse...

Atenção! A geração de 70 e os "Vencidos da Vida" são grupos diferentes, embora alguns membros da geração de 70 tivessem "prosseguido" nos "Vencidos da Vida".

Nuno Castelo-Branco disse...

E a Geração de 70 do século XX?

António Viriato disse...

Como o próprio Eça deixou escrito em forma lapidar : « ... Para um homem, o ser vencido ou derrotado na vida depende, não da realidade aparente a que chegou, mas do ideal íntimo a que aspirava».

Ele e os seus pares, ditos vencidos da vida, fizeram um trabalho de demolição do Portugal arcaico, obtuso e inconsciente que encontraram.

Faltou-lhes engenho para o trabalho de construção, mais moroso, mais paciente, de que o País precisava. Mas nem todos têm arte para tudo...

Façam hoje o resto, os que se acham com capacidade para tal !