4.7.06

SEXUALLY SPEAKING


1. Continuo com Gore Vidal. Há para aí uns onze anos, li as suas memórias, Palimpsest, e volto amiúde ao United States, a colectânea de quarenta anos de ensaios, a que se seguiu outro livro, porventura não tão interessante, intitulado The Last Empire. Daqui e dali, entre ensaios e entrevistas, surgiu uma outra colectânea - que às vezes aparece na FNAC - chamada Sexually Speaking. Vidal é, na verdadeira acepção da palavra, um romano. Talvez o último. A sua desmesurada paixão, balanceada entre o amor e o ódio, pela história do seu país, jamais o impediu de ser, à sua maneira, um americano europeu. Pertence a uma estirpe rara de homens cosmopolitas e sofisticados que começa desgraçadamente a desaparecer. Não tem questões mal resolvidas com a vida. Por mais que me esprema, não me ocorre nenhum paralelo português contemporâneo. Apenas Eça - other times, other places - andou por perto.
2. Já não sei em que ocasião, Roland Barthes disse que, naquilo que escreve, cada um defende a sua sexualidade. O excesso de "linguados" e de "mamas" no Equador de Miguel Sousa Tavares, a pudicícia na atracção sexual entre um professor universitário e o seu aluno da faculdade de Letras no primeiro "romance" de Frederico Lourenço, Pode um desejo imenso, ou o detalhe de Maria Filomena Mónica, em Bilhete de Identidade, nuazinha debaixo de um casaco comprido, em trânsito de um primeiro andar para um rés-do-chão prometedor em Inglaterra, podem querer dizer muita coisa ou rigorosamente nada. Nestas matérias, aliás, Filomena Mónica, aprecie-se ou não, foi a que mais perto esteve ,"em escrita", da sua "verdade sexual" - se é que isto existe -, expondo-se (numa "exibição", por vezes, desnecessária), da mesma maneira que o fez Vidal no Palimpsest. O pormenor da famosa fellatio perpetrada por Jack Kerouac, na noite em que se conheceram em Nova Iorque, não acrescenta nem tira nada à "masculinidade" de ambas as personagens, apesar de Kerouac ter oscilado a vida inteira entre a cerca e o "pular da cerca". Vidal viveu, salvo erro, cinquenta anos com um homem que morreu o ano passado e com o qual nunca terá tido relações sexuais. E nunca teve dúvidas acerca do que gostava, pese embora ter sido "íntimo" de criaturas como, por exemplo, Anaïs Nin que não era propriamente uma amadora.
3. O texto que se segue - edit meu - fala de nós. É de um psiquiatra que também escreve. Nele se explica por que é que as mulheres convivem bem com a sua feminilidade e os homens, pelo contrário, precisam de exibir permanentemente a sua masculinidade para "provar" e "afirmar" que são homens. Por cá, no entanto, e segundo a já citada Filomena Mónica na Pública de domingo, ainda há cerca de 32% de homens que, no anonimato de um inquérito sobre "costumes", disseram que "preferem" o Figo - "o homem ideal" - ao corpo "sem pelos e magro" do Beckham que recolheu, apesar de tudo, 20 % de opiniões positivas "machas". Nesse mesmo inquérito, fica-se a saber que 15% dos "machos" praticam a depilação "por se terem convencido que os seus pelos eram inestéticos". Curiosamente apenas 16% das mulheres inquiridas torceram o nariz aos pelos dos "machos", o que pode confirmar que as mulheres portuguesas estão bem mais seguras da sua feminilidade do que os "machos" da sua "macheza". Eu sou um liberal nestas coisas. Só não suporto exibições gratuitas e frivolidades. De resto, sexually speaking, vale apenas o que nos faz - se alguma vez isso for possível - felizes.

"A DÍFICIL CONSTRUÇÃO DO HOMEM-MACHO"

Quando pensamos na Humanidade, pensamos no homem e na mulher como os seus dois elementos. Durante milénios, evocámos quase sempre a figura do homem como seu cabal representante. De facto, culturalmente, sobretudo no mundo dito civilizado mas não só, a figura do homem, em comparação com a da mulher, é a “verdadeira” representante da Humanidade. A própria cultura judaico-cristã reforçou muito essa ideia. Realmente, ainda hoje persiste a ideia do homem como o “sexo-forte”. Mas haverá realmente razões científicas para considerar o homem “algo mais” do que a mulher? Naturalmente, como acontece na maioria das espécies sexuadas, os géneros manifestam-se geralmente de forma diferente e assumem diferentes papeis no ecossistema. A “decisão” da natureza em tornar uma espécie “apetrechada” com dois sexos distintos prende-se com a vantagem em haver mistura genética, de forma a eliminar anomalias, pela existência no código genético da descendência, de pares cromossómicos. Uma vez que se salvaguarde a consanguinidade, as “taras” cromossómicas herdadas de um dos progenitores podem ser “compensadas” pelo cromossoma homólogo oriundo do outro progenitor. Nesse ponto a civilização tem-se portado bem e tem dificultado a consanguinidade de acordo com a “intencionalidade” da natureza. Tal dualidade cromossómica não se verifica sempre. O 23º par cromossómico é na espécie humana constituído por XY no caso do macho ( e por XX no caso da fêmea). Sendo o 23º par cromossómico o responsável pela expressão dos caracteres sexuais na humanidade, poderíamos dizer que um homem, só seria tão homem quanto uma mulher é mulher, se, no seu 23º par cromossómico, existissem 2Y (YY). Tal não é o caso. Parece que teremos de admitir que nesse par, o X existe como um “elemento de base”, ao passo que o Y simbolizará a diferença sexual masculina. Mesmo nas suas variantes patológicas, a Natureza parece nunca ter produzido um 23º par só com Y ou Ys. Pelo contrário, existem as Síndromes de Turner e de Klinefelter ( XO; XXX; XXY), mas não existem “variantes” YO , YY ou YYY. Ao que tudo indica, o cromossoma Y “surge” para “desviar” a tendência natural da gónada embrionária e tornar possível a existência de um testículo em vez de um ovário. Só depois desse “desvio” acontecer é que se irá produzir uma hormona responsável pela criação das características masculinas – a Testosterona. Assim, parece que o programa genético básico está muito mais “inclinado” à produção de fêmeas do que à de machos. Parece pois, que a nível genético a “pré-história” do homem é comum à da mulher, sendo a sua diferenciação “mais frágil” e “acidentada”. Também a nível embrionário a “pré-história” do homem é mais complicada. Ele passará os seus primeiros nove meses de existência dentro de uma mulher, não dentro de um homem. Durante esse período, ele “sentirá” com a sua progenitora todas as sensações desta. O homem no útero vive “travestido” de mulher. Enquanto que uma mulher vem de uma mulher, o pequeno macho vive durante toda a vida intra-uterina, e como recém-nascido, “impregnado” de feminino. Existe sempre no Homem uma proto-feminilidade (Stoller). É precisamente por essa proto-feminilidade existir que a identidade do género está, muito provavelmente, nas mulheres mais “alicerçada” que nos homens. Isso, porque a construção de uma mulher começa mais cedo e ocorre de forma mais natural que a construção de um homem. A masculinidade é mais tardia do que a feminilidade e o rapazinho terá de a alcançar com o próprio esforço em se separar, sem problemas, da natureza feminina de quem o gerou e amamentou. Um dia, tal rapazinho conseguirá ver na mãe um “objecto” suficientemente separado de si próprio, de modo a poder representar um “objecto” passível do seu desejo heterossexual. O conceito clássico, segundo o qual a masculinidade resultaria de uma relação precoce heterossexual com a mãe e a feminilidade de uma relação precoce homossexual também com a mãe, parece não corresponder à cronologia dos acontecimentos. Nos primeiros tempos de vida, os dois “objectos” não existem distintamente, sendo antes um todo em perfeita simbiose. Tal simbiose é prolongada muitas vezes por um pai que se mantêm fisicamente afastado do homem-bebé com medo do fantasmagórico “incesto homossexual”. A maioria das vezes, o pai quererá transmitir ao filho, muito mais do que afecto, um companheirismo baseado em afirmações de virilidade, tentando desenvolver nele atitudes de competitividade e de afirmação ora pela vitória, ora pela capacidade de tolerar a derrota escondendo os sentimentos (um homem não chora!). O afecto é frequentemente “entendido” como uma manifestação feminina. Uma tal estruturação impedirá os homens de serem verdadeiramente “íntimos” nas suas relações. Dar-se-ão com outros homens na procura de afirmação viril e numa “luta” onde se diluía o mais possível a sua proto-feminilidade. A masculinidade é um imperativo para o homem, sendo a feminilidade um fenómeno relativamente pacífico e natural para a mulher. As “cicatrizes” da proto-feminilidade levarão o homem-macho a um “eterno” medo de homossexualidade que o tornará de algum modo um ser “mutilado” de afectos. É assim que se torna realmente uma tarefa difícil a construção do homem-macho. Se, por outro lado, algum dia podermos aceitar a nossa própria feminilidade e encararmos com naturalidade a nossa “pré-história” feminina, então, criaremos um macho mais humano e mais maduro porque liberto da luta adolescente que nos persegue até demasiado tarde .

António Sampaio, psiquiatra

8 comentários:

Anónimo disse...

João Gonçalves
Depois dos choquinhos à algarvia, etc, etc, também este post é estimulante, como foi o almoço.
Embora não perceba nada de genética e de ciências afins, o post covoca-nos para um "ambiente" de ideias claras e escorreitas, embora tivesse ficado com a sensação que, pelo psiquiatra António Sampaio, ainda perpassam algumas incertezas.
Ou fui eu que li mal?
Abraço

E.T. Encontrei e li aquela "coisa" que vem escrita "No nome da coisa", muito "coisada" por sinal...

Anónimo disse...

Caro JG,

Agora só falta ler também sobre o tal papel do "cérebro cromossomático" no ímpeto sexual - independentemente dos sexos biológicos...

;-)

Anónimo disse...

Excelente post.
Nós homens somos a diferença, a ruptura... o desvio na estrada!
Já houve quem disesse que os homens eram extraterrestes! Enquanto que as mulheres eram originárias da Terra! Por isso somos tão queridos e tão apaparicados pelas mulheres!!!
O X é o encontro, o Y é o desvio (isto é profundo!)

Anónimo disse...

OK, pessoal! Ainda estamos na fase do autoconhecimento, de enfrentar a angustia de sermos o homem com H. Estas questões já estão bem tratadas na literatura universal, pelo menos desde o sec.V a.C., mas é recorrente, já se sabe que o pessoal salta páginas para chegar rapidamente ao fim do livro.
No seculo passado também existe alguma produção cultural sobre o tema da sexualidade, seja monovalente, seja ambivalente.
Para os mais ansiosos recomendo lerem Carl Jung, para os outros basta Wilhem Reich. Vão ao Google, daí saltam para o site da Amazon e encomendem.
Ou melhor ainda: aproveitem o Verão!

Anónimo disse...

Só “espero” que não tenha sido o “mesmo” psiquiatra que disse o que ” transcrevo” do seu Post de 2/7/06

«... como me diz o meu psiquiatra, termos um estado de espírito que nos dispense de investir em "qualquer outro"»

João Gonçalves disse...

"qualquer outro"... estado de espírito.

Anónimo disse...

Obrigada

De repente parece que queria dizer
» termos um estado de espírito que nos dispense de investir em "qualquer outro" e, esse “outro” sería “uma pessoa”»
o que para mim sería um “absurso” saído da boca de um “psiquiatra”

Anónimo disse...

E, só neste bocado “TANTO aqui ESTÁ DITO” ....

«Nos primeiros tempos de vida, os dois “objectos” não existem distintamente, sendo antes um todo em perfeita simbiose.
Tal simbiose é prolongada muitas vezes por um pai que se mantêm fisicamente afastado do homem-bebé com medo do fantasmagórico “incesto homossexual”.
A maioria das vezes, o pai quererá transmitir ao filho, muito mais do que afecto, um companheirismo baseado em afirmações de virilidade, tentando desenvolver nele atitudes de competitividade e de afirmação ora pela vitória, ora pela capacidade de tolerar a derrota escondendo os sentimentos (um homem não chora!).
O afecto é frequentemente “entendido” como uma manifestação feminina.
Uma tal estruturação impedirá os homens de serem verdadeiramente “íntimos” nas suas relações.
Dar-se-ão com outros homens na procura de afirmação viril e numa “luta” onde se diluía o mais possível a sua proto-feminilidade.»

É “UM MAGNÍFICO POST”

OBRIGADA