Era no princípio dos anos oitenta. Dois colegas da Católica, levaram-me até ao Festival de Cinema da Figueira da Foz. Um, nessa altura, tinha umas vagas pretensões literárias - na realidade, entretinha-se a imitar o Hemingway - e o outro, mais modesto, apenas gostava de cinema. Ficámos os três alojados numa miserável residencial, no mesmo quarto e com uma casa de banho infecta. Nesse ano, o filme "sensação" era "Francisca", de Manoel de Oliveira, e o "grande prémio" foi entregue à película francesa "Diva", a surpresa do Festival. Voltei no ano seguinte. Outras companhias, outros quartos. Em dez dias, devo ter visto para lá de sessenta filmes. Calhou, até, apesar da "tenra" idade, "ver" - premonitoriamente - aquilo que viria a ser a minha não-vida daí em diante. Desses tempos singulares, recordo sobretudo o meu atravessar do gigantesco areal da praia da Figueira, manhã cedo, até ao café em frente do Casino, depois de noites e noites inverosímeis. Aí, um dia, encontrei o Eduardo Prado Coelho a engraxar os sapatos e a preparar-se para ir até à gráfica onde a sua tese estava a ser impressa. Arrastava-me, depois, para toda e qualquer sala da cidade onde passasse um filme de um realizador obscuro, para fugir às minhas companhias e de mim próprio. Em pleno processo de afundamento, o saudoso Herlander Peyroteo levou-me a almoçar a Buarcos. Houve ainda tempo para um jantar melancólico, num restaurante indiano (comida detestável), em que acabei sozinho, com a garrafa de vinho, depois de ter conseguido proferir a palavra mágica. Passaram vinte e quatro anos. Os dois colegas da Católica são hoje garbosos advogados da nossa praça. A companhia luminosa e funesta do ano seguinte é economista numa multinacional e tem dois filhos adolescentes. O Prado Coelho anda por aí e o Peyroteo já desapareceu. A Figueira desses dias também. Lembrei-me disto tudo porque li no jornal que tinha morrido o "pai" do Festival, o José Vieira Marques. Os outros moveram-se. Aliás, tudo se moveu para nunca mais. "Nunca escrevi, julgando escrever, nunca amei, julgando amar, nunca fiz mais do que esperar", escreveu algures outra "heroína" do Festival, Marguerite Duras. Apesar dos vinte e quatro anos decorridos, continuo sentado no mesmo banco de pedra da marginal, em frente ao Grande Hotel da Figueira, a olhar para o mar. À espera.
21 comentários:
João Gonçalves,
Há vinte e quatro anos atrás, ainda não existia oportunidade de deslizar pela internet e visitar sítios com prosa que vale a pena ler. Mesmo que tudo mude há volta, há marcas que ficam. Parabéns pelo seu tino e pela sua "resistência à mudança"
Belíssimo texto.
"... Esperámos, a tiritar no ventinho da manhã, o céu de vidro das primeiras horas de luz, o nevoeiro cor de sarja do equinócio, os frisos de espuma haveriam de trazer-nos ... um adolescente louro, de coroa na cabeça e beiços amuados, vindo de Alcácer Quibir... aguardando, ao som de uma flauta que as vísceras do mar emudeciam, os relinchos de um cavalo impossível."
As Naus
António Lobo Antunes
Afinal ... tão português! Lindo!
E com o este blogue fica mais intenso quando lido no bloglines. A fotografia da figueira assaltou-me positivamente o ecran, enorme, de se mergulhar para dentro.
O memso já havia acontecido com a imagem de Luís Figo.
Meu caro João Gonçalves:
Gostei muito de ler o seu texto evocativo que é uma bela homenagem ao pai do festival da Figueira quando ainda não existiam «produtores culturais».
Também eu estive aí por essa altura, no ano da «Conversa Acabada» do J. Botelho e do «Silvestre» do J César Monteiro.E encontrei o EPC, claro está..
Outros tempos. Outros nós. Outros os que não nos sobreviveram. No meu caso, mais do que deviam ter sido. Conversas acabadas cedo demais...
Mas a Figueira, essa lá está. E há coisas que nunca mudam. Feliz ou infelizmente.
Beijos
muito bom!
Este excerto do seu texto:
"Apesar dos vinte e quatro anos decorridos, continuo sentado no mesmo banco de pedra da marginal, em frente ao Grande Hotel da Figueira, a olhar para o mar. À espera."
fez-me lembrar os primeiros dois versos de um poema de Torquato da Luz, intitulado "Espera" e publicado no blog "Ofício Diário" em 18 de Maio último:
"Quase trinta anos depois, ainda estou à tua espera,/ no átrio do hotel onde combinámos encontro (...)".
Ele há cada coincidência...
Bons tempos mas funesto!!!!??????
Pois só uma coisa se mantem a mudança.
A nossa vida é oa nossa memória e esta tem espaços de refência, que já mudaram também. E depois a memória de hoje é diferente da memória de ontam.
Brilhante este teu texto! Adoro quando ficas sentimental...
Abraço!
Pedro Rap.
quem és tu joão gonçalves que és tão amargo com a vida?
não estará apenas a espera de SI...
É muito belo o seu texto.
"ARREPIANTE", "LINDO", "Um POUCO TRISTE", realmente "REAL" ...
"Nunca escrevi, julgando escrever, nunca amei, julgando amar, nunca fiz mais do que esperar", escreveu algures outra "heroína" do Festival, Marguerite Duras.
»LINDÍSSIMA FRASE» é "mesmo isto"
- Apesar dos vinte e quatro anos decorridos, continuo sentado no mesmo banco de pedra da marginal, em frente ao Grande Hotel da Figueira, a olhar para o mar. À espera -
«EXCELENTE» sítio "somente" para “olhar o mar”
Cuidado não surja algum "tsunami" ...
Lembro-me do MEC, já com o grão na asa, à porta do "Caçarola 2", em pose de forcado, a gritar: "Ó Herlander, és uma merda!". Quem lá me levava ( eu era um puto na altura) era o João Aibéo, actual Procurador-Adjunto em performance no caso Casa Pia.
A propósito, o restaurante indiano era o "Escondidinho" e o EPC era o "croquete literário",
Vai ver, como é conservador, da Católica e apoiante do Prof. Cavaco Silva (por sinal socialista) que ao futuro ainda lhe reservará grandes missões como servidor do Estado. Tal qual como aconteceu aos seus colegas...E a reforma generosa não tardará, como merecem todas as pessoas de "bom gosto".
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