Nos anos cinquenta, Joan Crawford e Sterling Hayden protagonizaram um dos diálogos fetiche mais memoráveis da história do cinema. O filme era Johnny Guitar, de Nicholas Ray. Johnny pergunta a Vienna: "how many men have you forgotten?" Vienna responde, "as many women as you've remembered". Johnny dirige-se a Vienna, "don't go away" e Vienna esclarece, "I haven't moved". No princípio dos anos 80, Wim Wenders, com um argumento de Sam Shepard, "enfiou" Harry Dean Stanton num "peep-show" com Nastassja Kinski - o filme era Paris/Texas, onde Travis, o personagem viajante de Stanton, reencontra a ex-mulher. Estão separados por um vidro e pela vida. Travis - e agora passo a citar um texto de Eduardo Prado Coelho - "na longa cena do peep-show, conta: eles amavam-se, faziam de tudo uma aventura, ir comprar coisas à mercearia era uma aventura, riam de coisas estúpidas, ela gostava de rir, ele gostava de a fazer rir, e só queriam uma coisa: estarem sempre juntos. Ele, ele confessa: não suportava estar separado dela, não suportava ir trabalhar e ficar longe dela, não suportava trabalhar, porque, quanto mais longe estava dela, mais enlouquecia, até que enlouqueceu. "Deviam ser muito felizes", diz Jane". Esta "introdução" vem a propósito de Brokeback Mountain, de Ang Lee, que estreia para a semana entre nós e que alguém por perto me fez chegar em versão "dvx" que vi no computador. O filme, ao contrário dos outros dois, é parco nas palavras. Todavia, como os outros dois, não "economiza" noutras coisas. Ao longo de vinte anos, dois homens - esta é a "novidade" da película de Lee: não são um homem e uma mulher - mantêm entre si, apesar dos filhos e das esposas verdadeiramente patéticas, uma relação "nascida" no acaso de um trabalho solitário a tomar conta de ovelhas numa remota montanha americana. Depois cada um segue a sua vida, familiar, de trabalho e de mentira, até que - por se tratar de uma "contra-história" de amor - emerge inevitavelmente a tragédia, ambígua com se de "crime e castigo" se tratasse. Os "cowboys" de Brokeback Mountain são homens banais, não exactamente atípicos de uma determinada América "profunda", pouco dados a subtilezas de espírito ou de corpo e quase incompreensivelmente (do ponto de vista deles) apaixonados um pelo outro. Não é, por isso, um filme sobre "maricas", como alguma pequena burguesia de espírito, sempre analfabeta e sequiosa por um leve "escândalo", possa supôr. É um filme sobre a solidão humana na linha, por exemplo, de Million Dollar Baby. Não agride ninguém porque, na sua forma simples e magoada de exprimir as coisas, "fala" a qualquer um de nós, como "falam" ainda hoje os filmes de Nicholas Ray e de Wim Wenders. Brokeback Mountain, como o "rancho" de Vienna/Joan Crawford ou o "peep-show" de Kinski, é um lugar metafórico para onde, nos raros instantes de euforia antes da inevitabilidade, se pode "fugir" da vida como ela estupidamente é.
5 comentários:
"Agradecido" pelas informações sobre Brokeback Mountain, mas ao contrário de o visionar em dvx pirateado, tive oportunidade de o ver em NYC, em Dezembro passado.
Isto é como os acidentes de viação, cada interveniente vê-o à sua maneira...
Sendo um filme fabuloso e que vale por si mesmo, não vejo necessidade de o "ligar" a Paris/Texas, Johnny Guitar e Million Dollar Baby. Com todas estas conexões, o senhor transforma-se em verdadeiro arauto "anti (?) evangelizador",e em manifesta contradição com tudo o que apregoa, evangelizando que não se trata dum filme de "bixas/maricas", consegue mesmo incitar a que se assista ao filme com o pré-conceito de que se trata de um filme meramente sexual, quando afinal não foi essa a sua intenção!
Afinal de contas quem parece indiciar espirito pequeno burguês é o senhor que para justificar uma opção estética de Ang Lee cria com este poste, situação algo similar e patética como a estratégia do quadrado (4 filmes!)...
Ó Senhor, não avise tanto, não tome os outros por imbecis ou está somente a dirigir-se aos artífices do "Blasfémias"?
Brokeback Mountain é excelente e só alguns mentecaptos, é que o "obrigaram" a tecer explicações completamente deslocadas para traduzir algo tão simples como a condição humana!
Deixe-se de maniqueismos jesuíticos (à boa maneira das aulas de filosofia ministradas em Santo Tirso), expurgue-se de associações arrevesadas e não justifique o injustificável.
Não queira ser um S. Tomás de Aquino do sec. XXI!
Ou se gosta de Brokeback Mountain ou não!
Eu gostei!Independentemente da minha orientação sexual, que por sinal é heterosexual em "full time"... e de todo irrelevante para a leitura e compreensão do filme.
O seu barroquismo "crítico" é muito estimulante. Como V. afirma, cada um vê o que tem que ver, piratado ou não, como nos acidentes de viação. Eu "vi" assim e não tenho pretensões evangelizadoras,nem precisei de dizer que já estive no Lincoln Center duas ou três vezes para ouvir outras coisas que também me apeteceu ouvir, por exemplo. "Other places, other rooms". E já que faz questão em explicitar a sua heterossexualidade, como outros adoram berrar a sexualidade deles, "assuma-se" e faça um blogue. São só três passos. Qualquer deles é mais fácil do que o mais simples que V. tem que dar na sua bem resolvida vida.
Para quê fazer um blogue?
Quando quero ser intimista vou ter com o meu psicanalista.
Para chamar ao blogue o "Lado dos murmúrios" ou " Finalmente posso chorar no vosso ombro"? Nem pensar!
Eu não alimento nem a carvoaria de Pacheco Pereira, nem a destilaria de outros, nem forneço cloro para outras piscinas e muito menos fornecerei trigo para o fabrico do pão ázimo que se serve na Minha Rica Casinha... Só para ficarmos por aqui.
Obrigado pela comparação feita com a Helena e a Teresa.
De facto, eu sou dos que berram fora de quatros paredes sejam elas em Marraquexe ou no empório do Pestana; contudo, não necessito de agitar bandeiras, vestir camisolas ou percorrer maratonas.
Não deixo, mesmo assim, de constatar mais utilidade no blogue do Luís Grave Rodrigues do que no seu, por exemplo.
Sabe, é que eu não vejo a cultura dissocaida da função, daí achar que o que é verdadeiramente interessante é o DESIGN e não outras manifestações puramente "abstractas", sem embargo de considerar nesta linha, a ópera, como a mais completa das abstracções artísticas, mas sem função social reconhecida.
Finalmente diria que só resolverei bem a minha vida quando mandar à merda o psicanalista, o que ainda não fiz, ao contrário daquilo que V. pensa e diz...
Como os psicanalistas estão todos esgotados, quando sair dê-me o contacto. E se acha masi utilidade em ler outros blogues, por que perde tempo com o meu...?
Porque gosto de lhe bater e exercer o contraditório, embora não o conheça.
Ou não sou livre de navegar à bolina?
Deixe-se de ser castrador!
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