A Gradiva deu à estampa uma reedição de "Heterodoxia I", de Eduardo Lourenço. Folheei-a e ocorreu-me que possuo uma edição dos anos oitenta, da Assírio & Alvim, que junta as duas "heterodoxias" num único livro. Estão separados por cerca de dezassete anos, sendo o primeiro do final dos anos quarenta e o segundo de meados da década de sessenta. Para a edição da "Assírio", Lourenço escreveu um bonito prefácio "explicativo" a que chamou "Escrita e Morte" que me parece estar ausente da versão da Gradiva. É pena. Neste momento de perturbação por causa da querela em marcha nas ruas da Europa e de alguns países islâmicos, o livro velhinho de Eduardo Lourenço é uma leitura altamente recomendável. Lembremo-nos que foi escrito numa altura em que, por cá, o neo-realismo ligado ao PC tomava conta dos "intelectuais" - a coisa está muito bem descrita em alguns capítulos do mais recente volume da biografia de Cunhal, de Pacheco Pereira - e em que, na filosofia, Sérgio e os seus "discípulos" imperavam. Lourenço era então muito jovem, mas já "bastante" europeu. "Heterodoxia", como o nome indica, é um texto de ruptura e, no Portugal soturno de um lado e do outro, uma audácia. É, como escreve Lourenço, uma manifestação de respeito pela divisão do homem. "A heterodoxia não é fácil. Serviço divino a poucos cometido, paga-o a moeda que os deuses amam: a amargura e a solidão. Obedientes a um único mandamento, o de não recusar para as trevas aquilo que se vê na luz, essa exigência dá aos heterodoxos uma aparência inequívoca de dureza. Porque o Senhor é um só e os amigos, a mulher, o pai e a mãe não lhe guardam fidelidade, o heterodoxo não pode fazer outra coisa que declarar que "pai e mãe e amigos" são os que servem o deus e não aqueles que o mundo aponta segundo a carne. Mas trocar os amigos, o pai e a mãe, pela loucura invisível da Verdade, é ofender o mais originário dos mandamentos, o grito mais veemente da caridade animal e por isso o preço da ofensa é pago em amargura e solidão. E na boca daqueles cujo espírito é paz e cujo coração está cheio duma piedade comovida pelo destino de cada homem, o deus da heterodoxia pôe a palavra "guerra". Porque a paz do mundo é a negação do homem, os que amam o homem a ponto de se consumir nessa talvez inútil paixão, declaram que vêm trazer a guerra".
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