Depois de "gis" , "traços de gis" , de Fernanda Câncio, um belíssimo texto no Glória Fácil . "há uma semana a gis talvez ainda existisse na cave daquela construção embargada no porto. talvez o grupo de jovens que a matou tenha saído à rua como nos dias anteriores, com mais umas maldades engenhosas em mente, a caminho do seu espantoso passatempo (e há quem fale em 'crime inconsciente'? agora também há torturas 'inconscientes' de pessoas que duram dias? a sério?) (...) e não me venham dizer que é normal que ainda não tenha sido mostrada, na tv ou nos jornais (que eu tenha visto, ressalvo) a cara desta mulher que morreu. não é preciso explicar que a exibição de um rosto é uma estratégia básica de humanização e identificação -- e que a sua recusa é uma estratégia básica de abolição.queremos assim tanto que isto não tenha acontecido que negamos um rosto à vítima? queremos assim tanto esquecer aquilo que supostamente ainda não sabemos?"
«Somos poucos mas vale a pena construir cidades e morrer de pé.» Ruy Cinatti joaogoncalv@gmail.com
28.2.06
ALEGRIA PASMADA
Pasmaceira é a palavra que me ocorre para definir o presente "estado da arte". O Carnaval é um período deprimente destinado a evidenciar, de forma colorida e brutal, a nossa endémica miséria. Basta olhar para as barriguinhas proeminentes das sambistas de província para perceber do que falo. Os pais das criancinhas esmeram-se por as idiotizar um pouco mais. E, em casos mais graves, são os próprios adultos que dão margem à sua alegria forçada exibindo trajes e trejeitos adequados à época. Uma das piores coisas do mundo consiste em fingir a alegria. Entre nós - país periférico, pobre, sem memória seja do que for e pronto a render-se ao primeiro espectáculo "mediático" que lhe aparecer pela frente justamente para se esquecer daquilo que é - é normal que se "finja" a alegria e que se afogue a tristeza em álcool ordinário. É por isso que esta nossa alegria é uma alegria pasmada, sem conteúdo real. No fundo, queremos gritar ao mundo que estamos na merda, mas que estamos vivos. Que fraca consolação.
27.2.06
ATLÂNTICO
Comprei e fui ler, bem mandado pelo Steiner, para um café. Ficaram lidas as duas prosas de Maria de Fátima Bonifácio, um excelente "obituário político" do "soarismo" (a ele voltarei) e uma outra sobre "costumes", a de Filomena Mónica sobre a ausência de Deus na vida dela (e só Deus sabe como ela tem andado às voltas com a sua "identidade"), a de Constança Cunha e Sá que termina com a sua chegada à blogosfera e a de José Manuel Fernandes. Há muito mais (a Carla, por exemplo, disserta sobre blogues), naturalmente, para ler aos bocados. De qualquer forma, era só para dizer que vale a pena.
CONTINUAR A FALAR
Não é preciso ler Habermas ou Paul Ricoeur para saber em que é que consiste a "normativização" ou a "regulação" dos "costumes" e da "vida" ou, mais do que isso, até onde se pretende chegar com o exercício. Os "reguladores" raramente possuem a noção do "justo" tal como Ricoeur, por exemplo, a enuncia. Não me debrucei o suficiente sobre a nova Entidade Reguladora para a Comunicação Social para escrever como a Constança. Todavia, como confio mais nela do que em qualquer coisa destinada a "regular" seja o que for - por natureza, sou alérgico, como já o era em relação à defunta Alta Autoridade -, dou por estabelecidas duas ou três coisas graves que nem as falinhas mansas do dr. Santos Silva chegam para disfarçar. Estão todas bem evidenciadas no texto da Constança. E estou à vontade. Sempre fui dos que não simpatizam com o temor, tantas vezes reverencial, com que se olha para a classe jornalística. Só que agora a coisa é outra e mais séria. E aí entra isto, nas palavras da Constança: "seria ainda melhor ver o que vamos fazer nós – e quando digo “nós” não estou a referir-me apenas aos jornalistas." Cá estaremos para ver. Eu não sou dado a pieguices deste género, mas lembrei-me das palavras do padre alemão Martin Niemöeller, que Brecht imortalizou, e que convém obviamente "descontextualizar", salvo na parte em que é importante que alguém continue a falar:
"Primeiro, vieram buscar os comunistas.
Não disse nada, pois não era comunista.
Depois, vieram buscar os judeus.
Nada disse, pois não era judeu.
Em seguida foi a vez dos operários, membros dos sindicatos.
Continuei em silêncio, pois não era sindicalizado.
Mais tarde levaram os católicos.
Nem uma palavra pronunciei, pois sou protestante.
Agora, vieram buscar-me.
E, quando isso aconteceu, não havia mais ninguém para falar."
26.2.06
LIMITAÇÕES (actualizadas)
1. No Origem das Espécies, "Regular, regular", 1 e 2. "Daqui a uns tempos, se os deixarmos à vontade, toda a nossa vida estará submetida a entidades reguladoras com padrecas especializados ou polícias encartados e nomeados pelo governo ou pelos partidos."
2. No Glória Fácil, "Gis", de Fernanda Câncio: "a não ser que depois do martírio, depois da inominável agonia, depois deste horror que estremece todas as noções, todos os adquiridos (que sabemos falsos mas mesmo assim guardamos) se queira agora enterrar a gis [de Gisberto, o homem morto no Porto às mãos de um bando de "jovens"] nas suas múltiplas exclusões em nome da reabilitação dos seus agressores, fazer de conta que o que se passou não foi assim tão mau e que, sobretudo, não foi, não pode ter sido consciente, quanto mais premeditado.como se pudéssemos -- e quiséssemos -- apagar a gis e o seu terrível destino, para não termos de encarar o que aconteceu e porquê."
3. No Blasfémias, "Direito de pernada em Democracia", de João Miranda: "é natural que os nossos deputados queiram decidir por que métodos e com que meios financeiros é que nós nos podemos reproduzir."
4. No Mais Actual, "Despertar": "A nova legislação, que permitiu a tomada de posse de uma nova entidade reguladora da comunicação, começa a despertar as consciências, dando origem a chamadas de atenção muito pertinentes.Apesar do alerta em devido tempo, nunca são demais as opiniões sobre um assunto sensível e fundamental para a sanidade do regime democrático.Ainda se vai a tempo de inverter uma legislação impensável do autor do célebre golpe constitucional?"
BB COMO ELA É
A Carla exibe quase diariamente o seu desvelo fotogénico por Brigitte Bardot, na versão "boa". O acaso do zapping levou-me a um "canal de biografias" onde passava a da BB. Bardot era entrevistada na sua casa, com piscina ao fundo, e a conversa era entremeada com a história da vedeta, primeiro a preto-e-branco e depois a cores. A ex-diva já dobrou os setenta e "dobrou", como lhe competia, muitos homens. Porventura farta deles e dela própria, dedicou-se à causa animal. Isso aproximou-a de um outro filantropo de extrema-direita, amigo de Le Pen. No documentário chegou mesmo a falar da "admiração" que sentia pelo líder da Frente Nacional e confessou que nutre um enorme desprezo pela humanidade em geral. Bardot é hoje evidentemente uma ruína. Pelos vistos não apenas física, mas também "humana". A culpa, em parte, não é dela. Existe um mundo que a consumiu e que a secou oportunamente. Os animais são o seu último reduto, a singularidade frívola de uma loira septuagenária.
UMA ESTÁTUA PARA TEIXEIRA-GOMES
Quase nas vésperas de abandonar o cargo, Jorge Sampaio ainda arranjou tempo para ir à Argélia. Entre outras coisas, vai inaugurar uma estátua de Manuel Teixeira-Gomes em Bejaia, antiga Bougie, onde o ex-presidente da República se exilou e morreu em 1941. Há uns anos, li a biografia dele por Norberto Lopes - "O Exilado de Bougie" - e uns capítulos do livro de Urbano Tavares Rodrigues, "M. Teixeira-Gomes, O Discurso do Desejo" (Edições 70). Teixeira-Gomes sempre me pareceu uma personagem atípica da vida política portuguesa, particularmente da vida "irreal" da I República. Estudou em Coimbra onde frequentou medicina sem lhe conceder a menor importância. A isso preferiu definitivamente a literatura e a boémia. Colaborou em revistas e jornais, nomeadamente "O Primeiro de Janeiro", do Porto, e "A Luta", de Lisboa. O pai era um produtor algarvio - bem "amanhado" - de figos secos e Teixeira-Gomes acaba a viajar, à conta dessa indústria, pela Europa e pelo Mediterrâneo onde desenvolve o seu interesse pela literatura em encontros vários. Começa a publicar. Em 1899, "Inventário de Junho", em 1904, "Agosto Azul" e em 1909, "Gente Singular". A sua vida política inicia-se em 1911 e prolonga-se até 1918, como representante de Portugal em Londres. Quando Sidónio emerge, chama-o e de demite-o do cargo. Teixeira-Gomes fixa-se então no Algarve como administrador das propriedades. Toda a sua obra literária "vive" de figuras algarvias: "Sabina Freire", por exemplo, é uma viúva de Portimão. Entre 1919 a 1923 volta à diplomacia em Madrid e de novo em Londres. Foi eleito presidente em 6 de Agosto de 1923, ganhando a Bernardino Machado. "A política, longe de me oferecer encantos ou compensações, converteu-se para mim, talvez por exagerada sensibilidade minha, num sacrifício inglório. Dia a dia vejo desfolhar, de uma imaginária jarra de cristal, as minhas ilusões políticas. Sinto uma necessidade, porventura fisiológica, de voltar às minhas preferências, às minhas cadeiras e aos meus livros", escreveria. Dotado de uma fina e amargurada sensibilidade, incompatível com a mesquinhez do regime e dos seus servidores, resigna ao cargo em 1925 e parte para Bougie, na Argélia, que ele via como "uma Sintra à beira-mar". Os seus restos mortais só regressariam a Portugal em 1950. Durante o exílio poucos ou nenhuns contactos manteve com o país, família incluída. Era um sensualista que amava os prazeres indistintos que a vida lhe proporcionava, algo que a sua escrita, em grande medida, reflectia. Bem longe daqui, trocou a hipocrisisa nacional pela sua "verdade", fosse lá ela o que fosse. Norberto Lopes via-o, e bem, como uma "personalidade requintada, sóbria, simples como a de um grego do século de Péricles, magnânimo e brilhante como a de um príncipe florentino da Renascença". Manuel Teixeira-Gomes: mais um que se enganou no lugar onde nasceu.
O ESTÁDIO NATURAL
Para quem, como eu, reside nas imediações do estádio do Benfica, este é mais um domingo infernal. Juntam-se duas boçalidades, os "super-dragões" com os congéneres benfiquistas, uns "neos" qualquer coisa ou "diabos vermelhos". O centro comercial mais perto do estádio, o Colombo, é literalmente invadido por batalhões familiares de cachecóis azuis e vermelhos com uns chapéus rídiculos estilo "joker", uma imitação do diabo, fosse ele imitável. O que ultimamente me tem chamado mais a atenção nestas movimentações futebolísticas é a presença, em número cada vez maior, de mulheres. Antigamente as esposas ficavam nos carros a tricotar e em amenas cavaqueiras com as outras esposas enquanto os cabeças de casal uivavam nas bancadas. Agora parece-me que são as próprias que reclamam o mesmo estatuto de fervorosas adeptas e, seja qual for a idade, lá as vemos arrastando-se para os estádios com o mesmo ar idiota dos companheiros e paramentadas como lhes compete. Em toda a minha vida devo ter assistido a não mais de três ou quatro jogos de futebol. Não "sofro" particularmente por nenhum clube e, quando muito, posso inclinar-me, por mera proximidade histórico-geográfica, para o Benfica, desde que tudo decorra a uma distância conveniente para os meus passos. É que o futebol tropeça vezes de mais na minha vida para que não deixe de me incomodar. Dito isto, e apesar de tudo, espero que o sr. Pinto da Costa regresse ao Porto irritado o que é, aliás, o seu "estádio" natural.
25.2.06
UM PRIVILEGIADO
24.2.06
INTERVALO E TENTATIVA
Um ano de depois da vitória de Sócrates, que tem sido feito dela? Eu falo de Sócrates e não do PS porque do PS espero pouco. É um velho conhecido de sempre. Porventura mais “modernizado”, com rostos de uma outra geração misturados com vetustas relíquias, o partido do poder não apresenta mais sinais de maturidade do que no passado. Nem ele, nem, aliás, os restantes das oposições. Sócrates, sucedendo ao descalabro político e pessoal de Santana Lopes – e à medida que o tempo passa percebemos que foi muito mais dele do que exactamente do seu governo -, emergiu com uma auréola radiosa por detrás da sua inexpugnável frieza. É essa ambiguidade luminosa que lhe permite passar praticamente despercebido por entre os escolhos. Por exemplo, Campos e Cunha nunca foi devidamente explicado e Freitas do Amaral nem sequer tem explicação. E ninguém pede explicações. Enunciações bombásticas perdem-se na agenda mediática e os milhões dos “projectos” no foguetório de sessões públicas de luxo. Como outros do passado e do mesmo lugar que Sócrates ocupa, ele é seguramente melhor que o melhor dos seus pares. De uma forma geral, a sua geração política tem sido decepcionante. Por perto, espreitam mandarins de aparelho que ameaçam as melhores intenções. O voto em Sócrates, no momento em que foi proferido, significou duas coisas: remover Santana Lopes para o “recobro” político – voltará, é certo, e deve voltar – e fornecer um sinal para que se fizesse o que tinha de ser feito. Aqui Sócrates tem funcionado por “intervalos e tentativas”. Não tanto por sua culpa, como por falta de densidade política de alguns que o cercam. À “violência” formal de determinados arrojos, não corresponde, as mais das vezes, substância. Não se “muda” ninguém contra a sua vontade e o Sócrates “humano” é a melhor evidência disso. Para avançar, é preciso romper. Mais tarde ou mais cedo, para Sócrates poder avançar, terá que introduzir rupturas na desalinhada “estrutura” que o acompanha. Só assim não será interrompido.
(publicado no Independente)
23.2.06
TRUMAN
De vez em quando lembro-me e lembro a amigos e conhecidos uma pequena parte do prefácio de Música para Camaleões, de Truman Capote. Este filme com o seu nome parece que anda à volta da "criação" do seu mais famoso livro, In Cold Blood, algo a que o autor diz ter sido conduzido por causa de "um instinto misterioso". No entanto, o Capote que eu prefiro está antes no primeiro livro mencionado e noutros como Súplicas Atendidas ou Os Cães Ladram, livros de crónicas, de retratos e, neste último, do relato de uma interminável viagem pela Europa e pela Rússia em boas companhias. "Rich and famous" é mais ou menos o "ambiente" em que Capote, com a sua invejável língua de prata, vivia. Mordeu-a várias vezes, mas não foi isso que o matou. Gore Vidal comentou o seu desaparecimento com a pior das mordacidades: "it was a good career move". Volto ao princípio, a Música para Camaleões. O "chicote" de que Capote fala no prefácio, aplica-se a muitas coisas nas nossas vidas e não exclusivamente ao acto da escrita. Eu, pelo menos, sinto-o diariamente bem como a "inclemência" que ele associa à escrita e que eu associo a quase tudo. É a "negra loucura" onde eu - como ele - "evidentemente" estou, "com o baralho de cartas e o chicote que Deus me deu". "Quando Deus nos concede um dom, dá-nos também um chicote; e esse chicote destina-se unicamente à autoflagelação".
FESTIM NU
Um bando de energúmenos, tratados gentilmente pelos costumes e pelo regime como "crianças", executaram fria e sadicamente um homem no Porto. Quando terminaram o festim, deitaram-no para um poço num prédio em construção. O homem em questão é-nos apresentado como "travesti", "toxicodependente" e "sem abrigo" e as "crianças" pertencem às oficinas de S. José, com idades compreendidas entre os 10 e os 16 anos. Avançou o habitual batalhão de polícias e de sábios da Lei Tutelar de Menores para aplicar "sanções". A seu tempo aparecerão os psicólogos sociais com as suas "equipas-projecto" para "acompanhar" as criancinhas criminosas. Supôe-se que terão ficado "traumatizadas" e, mesmo que esse não seja o caso, os psicólogos sociais encarregar-se-ão de arranjar qualquer coisa para se entreterem nos seus relatórios inócuos. Eu limito-me a citar o Eduardo Pitta: "o mergulhador do Batalhão de Sapadores Bombeiros do Porto que retirou o travesti do fundo do poço deparou-se "com o corpo a boiar de bruços, com as calças desapertadas e baixadas [...] a vítima tinha escoriações nas nádegas." Comentários para quê?" Sim, para quê?
KILAS
A RTP dá-nos hoje, provavelmente lá para as tantas, a possiblidade de revermos o filme Kilas, o mau da fita, de José Fonseca e Costa. E de vermos Mário Viegas, esse extraordinário actor português precocemente desaparecido, ao lado de Lia Gama Paula Guedes ou de Milu, que faz de "tia". A música é de Sérgio Godinho. É a uma tia escandalizada, a Milu, que Viegas/Kilas se dirige num momento de desabafo mais vernacular: "as mulheres são todas iguais, são todas umas putas...". A ver ou rever.
ANTES DE CAIR
Pela Joana Amaral Dias fico a saber que o sr. ministro dos Negócios Estrangeiros, Freitas do Amaral, disse ao Público que as afirmações que proferiu sobre a polémica os cartoons correspondem a frases que "foram truncadas", "deturpadas" e alvo de "simplificações grosseiras". É Freitas no labirinto do respeitinho. E é sempre assim que se começa antes de cair.
22.2.06
UM MANDAMENTO
Hoje acordei* assim, com pouca vontade de olhar para o umbigo da blogosfera e, muito menos, para o meu. Tinha pensado em prescindir dos comentários anónimos já que o que menos custa é inventar um nome ou umas iniciais. Todavia, era só o que me faltava, nesta fase melancólica da existência, pôr-me aqui a pensar nisto com o sol ali fora.
21.2.06
A DERRADEIRA LÁGRIMA
O dr. Sampaio voou até Timor para verter uma derradeira e furtiva lágrima. Desta vez, a venera foi ao encontro do condecorado, o homólogo Xanana. Timor pesa-nos. É uma daquelas matérias que temos com nós mesmos que ficará eternamente mal resolvida. Fátima ou a língua portuguesa, duas coisas que apresentamos como ex libris do nosso relacionamento com Timor Leste, arriscam-se a ser cada vez mais uma memória, muitas vezes péssima. Andámos com o pathos timorense ao colo como se de uma cruz se tratasse. Pagámos os preços de todos os remorsos em todo o lado. Falta pagar mais um. Ramos Horta, o vaidoso ministro dos Negócios Estrangeiros, suspira pelo inútil cargo de secretário geral da ONU. Freitas do Amaral, o preclaro congénere português, já soltou o apoio. Deve seguir-se Sampaio, de preferência emocionado. Timor Leste merecia melhor sorte do que ter tido que depender de nós e dos caprichos de uma ditadura vizinha. Nós apenas nos "comovemos" e observamos, ao longe, o que se passa. A Austrália, afinal, é já ali ao lado e o inglês, a gramática global. Este tardio romantismo político de Sampaio, ao outorgar a Timor Leste uma simbólica e melancólica despedida, é inconsequente. A realidade política das coisas é o que ela é. Está longe de ser o que Sampaio, na sua frivolidade, pensa que ela é.
BUROCRACIA ÚNICA
O Eduardo Pitta foi a um dos mais concorridos serviços de finanças de Lisboa, o de Alvalade. Conta que, para o multibanco funcionar, os telefones têm de estar desligados. Ou um ou o outro. Este serviço devia pura e simplesmente ser encerrado. Os seus funcionários trabalham num ambiente deplorável que se estende ao atendimento. Há dias eram os próprios funcionários que andavam a limpar e a mudar caixotes. Em vez de se preocupar com a bufaria - pôr cá fora listas de devedores para o vulgo devassar sem que isso garanta o que quer que seja ao Estado- o governo faria melhor em tratar destas "micro-causas". Quem diz isto, diz levar as coisas a um tal ponto "tecnológico" que o contribuinte fique "dispensado" de entregar o seu imposto já que o fisco, devidamente assenhoreado, passará a fazer isso por si. Dispensamos o "big brother" fiscal ou outro qualquer. O "pensamento único", extensível ao nosso miserável quotidiano e à burocracia, é uma ideia desagradável. Convém, no entanto, estar preparado para ela.
20.2.06
PATOLAS
Estou perigosamente perto do local onde apareceu morto um ganso patola. Consta que o animal foi removido como um perigoso terrorista ou um produto químico para análise. A GNR, devidamente enquadrada, encarregou-se da transumância. Ficaram de ver se foi vítima da gripe aviária. Dificilmente terá sido. Todavia a ideia da conversa era outra. Passou um ano sobre Sócrates e um ano sobre as nossas "grandes esperanças". Eu apenas reclamei aqui e votei para que fosse feito o indispensável. Há um ano o indispensável era retirar Santana Lopes de cena para evitar fazer mais mal a ele próprio e, por tabela, ao país. O resto viria de soi. Veio? A ver vamos, como dizia o cego. Sócrates, graças a Deus, é imperfeito. Manda num partido onde o mandar é difícil. O partido, por sua vez, manda no governo. E as "cabeças" do aparelho mandam nos dois. Estamos melhor? Estamos vagamente na mesma, sem o entretenimento diário que Santana Lopes proporcionava. Sócrates merecia melhor e deve fazer por merecer melhor. Se fosse hoje, como eleitor, eu provavelmente faria a mesma coisa. Em 2005, mudei, em "legislativas" e pela primeira vez, o meu habitual sentido de voto. Como diria o Lampedusa, é preciso que alguma coisa mude (escrevi a frase sem me rir). Dito isto, somos uns meros patolas. Vivos, mas patolas.
19.2.06
EXIBIR A EXIBIÇÃO DO EXIBICIONISMO
"Globalizou-se um novo tipo de informação sobre os conhecidos que revelava o verdadeiro significado destes "conteúdos" da indústria cultural: é irrelevante o que as pessoas fazem na vida profissional, se é que a têm, só interessa a sua vida privada. Para isso contribuíram as manas Grimaldi do Mónaco e outras realezas, que pareciam limitar-se, no espaço público, a exibir a exibição do seu exibicionismo (...). A indústria das pessoas-marcas entrou numa espiral que arrasta uma incrível quantidade de publicações. E arrasta também os próprios conteúdos televisivos: a TV não só cria conhecidos, como cria programas para os conhecidos de darem a conhecer ainda mais ou outra vez".
Eduardo Cintra Torres in Público
QUESTÕES DE TODOS OS DOMINGOS
"O regime de escutas telefónicas é absurdo? O âmbito de competências das escutas telefónicas é excessivo, vago e descontrolado? As fugas de informação no sistema judicial são a regra? A violação do segredo de justiça, por parte dos operadores, é prática corrente? A Procuradoria é cada vez mais atabalhoada e impotente? Há, em simultâneo, incompetência e intenção dolosa por parte dos autores das fugas de informação? O despotismo de alguns magistrados é incontrolável? Não existe autoridade disciplinar efectiva no sistema de justiça? O Governo e o Parlamento mostram ser incapazes de reformar os procedimentos e a legislação? Tudo isso é secundário. A nada disso se responde."
António Barreto, in Público
18.2.06
O METRO
Para além da Casa da Música, o Porto também arranjou um sarilho chamado "Metro do Porto". De acordo com um relatório oficial que a "teoria da licenciosidade" em vigor não permite que se conheça na íntegra, a administração do dito tinha direito a uns "prémios" de gestão, uma simpática extravagância outorgada em 2000 pelo dr. Coelho na sua breve encarnação como ministro das obras públicas. Valentim Loureiro e os outros autarcas responsáveis pelo "Metro" avalizaram a coisa e o dinheiro foi distribuído em conformidade. Agora o governo quer "avocar" o "Metro", presumivelmente para colmatar os disparates que o tal relatório evidencia, mas que a opinião pública e pagante só pode conhecer "em parte". Nada disto seria muito importante se o referido "Metro" fosse um "modelo" em todos os sentidos e não apenas no estético e utilitário. Acontece que não é. É mais uma trapalhada onde, como dizia o ex-pai da Pátria, "o dinheiro aparece sempre".
COMEÇA BEM
O sr. Pedro Burmester, um dos expoentes da "cultura musical" portuguesa, que acumula com a de pianista e de gestor de equipamentos culturais, voltou à Casa da Música. A "inculta" Câmara Municipal do Porto e outros beneméritos da "direita" "conduziram" aparentemente Burmester para uma estrondosa demissão pela qual, aliás, recebeu a devida indemnização. Primeiro houve um "fadinho choradinho" em que participou o presidente da República com vista à "recuperação" do dito Burmester. Depois "traçou-se" um perfil de director artístico que, por mera coincidência, era o do pianista. Finalmente o próprio veio falar de "excessos", em jeito de mea culpa - não por causa da indemnização que prudentemente guardou, mas os dele contra Rui Rio - e aí o temos, de novo, ao leme do ex libris portuense. O que esta fantochada custa em dinheiro, não parece que custe muito em carácter. Razão tinha o dr. Soares que, numa das suas deambulações eleitorais, passou pela Casa da Música e lá foi dizendo que "o dinheiro aparece sempre". Para não destoar, a Casa da Música começa bem.
FAZER SENTIDO
Precisamente há um ano, a dois dias das eleições legislativas, escrevia-se aqui o seguinte: "Quando descer do limbo à realidade, Sócrates estará prisioneiro da velha evidência de que a vida é infinitamente mais rica do que a imaginação. Nunca o PS teve a votação que terá no domingo, e nunca o PS terá tanto trabalho duro pela frente, tanto mais exigível quanto maior for a "maioria". O país não está em condições de dar um segundo de tranquilidade a Sócrates, e ele sabe disso. Até agora, o PS cavalgou mais ou menos tranquilamente o nosso "não-querer-Santana-Lopes-e-Portas". A seguir, Sócrates terá que dar provas da sua coragem fria para fazer outra coisa. É esse o sentido do voto de muitos portugueses que normalmente não votariam no PS. Caso contrário, esse voto não fará sentido nenhum." Um ano depois, terá mesmo feito "sentido"?
DIZ O ROTO AO NU
O senhor "um milhão de votos", Manuel Alegre, permanece impavidamente em Marte. Perdeu as eleições, com os outros quatro, mas tem um "movimento" e tem "causas". Talvez por isto e por se supôr subtil e imprescindível, Alegre está à espera que José Sócrates lhe telefone. Imaginam para quê? Eu não e suponho que Sócrates também não. Como o primeiro-ministro não lhe telefona, Alegre manda-lhe recados. "Sócrates não tem experiência internacional e Freitas, no estado em que está, não dá garantias", disse o bardo. Realmente, Freitas não está - como, aliás, raramente esteve - em muito bom estado. Todavia será que Manuel Alegre já reparou no "estado" dele?
OBRIGADINHA
"As posições de Freitas do Amaral enquanto ministro dos Negócios Estrangeiros são posições do Governo."
17.2.06
TOMÁS TAVEIRA
Por causa de uma prosa que li no Hardblog o mês passado, reproduzida parcialmente aqui, percebi que reinava escândalo na cabeça de "ilustres" figuras da nossa "cultura" e da nossa arquitectura, em particular, por o arquitecto Tomás Taveira ter sido nomeado para o conselho consultivo do Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPAR). O dito escândalo manifestou-se agora sob a forma de "carta aberta", com 150 assinaturas, entregue no ministério da Cultura. Entre outros mimos, as notabilidades consideram um "insulto" e um "ultraje" a presença de Taveira no referido conselho e lembram, quais inquisidores de dedinho espetado, que foi "reformado compulsivamente" da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa. Se lermos os nomes das notabilidades que se eriçam contra Taveira, encontramos a "nata" do establishment no sector. Ou seja, trata-se de uma reacção corporativa e tipicamente de capela por parte de umas criaturas talentosas - algumas são-no, de facto - que o regime tem protegido e abençoado. Estão lá praticamente todas. Esta gente, como na política, considera-se dona dos costumes e das coisas em que mexem e onde sobrevivem. Fazem parte de um petit comité que se protege mutuamente e que, quase sempre, encontra no poder alguém que se babe para cima deles. Muitos ocuparam anos a fio cargos oficiais e "custa-lhes" - o termo é este - que um "renegado" como Taveira também possa ocupar. Tomás Taveira é um grande nome da nossa arquitectura contemporânea e, para sua infelicidade, não é tão "perfeitinho" como os seus algozes. O seu nome caiu na "boca do mundo" apenas por ser um bom profissional com defeitos humanos. As "virgens ofendidas" da "carta aberta" imaginam-se modelos virtuosos e cumpridores de padrões "morais". São mais uns quantos que estão muito bem uns para os outros.
FAZER DE CONTA
"Everyone enjoys a game of make-believe now and then. Of course, the ways in which we play can vary greatly. Sometimes we tell ourselves work won't interfere with our family life. Sometimes, we imagine certain relationships to be more meaningful than they really are. Occasionally, we put on a show, as if to convince ourselves our secrets aren't really all that terrible. Yes, the game of make-believe is a simple one. You start by lying to yourself... And if you can get others to believe those lies, you win."
16.2.06
"PORTUGAL MAIOR"
Há dias, numa entrevista a Maria Flor Pedroso, Medeiros Ferreira - presumo que sem ironia - disse que os melhores tempos que Cavaco Silva recordaria do seu mandato presidencial seriam os actuais, passados no Palácio de Queluz. Com a sucessão de demências e de "imprevistos" a que o país "profundo" que votou nele - e em Sócrates - vai mansamente assistindo, Cavaco poderá ter de assumir um maior relevo na paisagem política do que ele inicialmente previa. Apesar da maioria absoluta, há um perfume de trapalhada (Medeiros Ferreira diria "de comédia") no ar que é, no mínimo, comprometedor. Esse perfume acompanha, por outro lado, uma por enquanto vaga sensação de "venda de banha da cobra" que poderá afirmar-se mais consistente com o decurso do tempo. Aí, o país olhará com naturalidade para Cavaco Silva. Tudo indica que, em boa hora, lhe será reclamado o "Portugal Maior" que prometeu.
LICENCIOSIDADES
Graças ao Jorge Ferreira, descobri mais uma cavadela. É aquela coisa horrível da "licenciosidade", o jargão que substitui doutrinariamente a "liberdade de expressão". A doutrina foi firmada há dias, a partir do MNE, por uma notabilidade administrativista das nossas faculdades de direito que, antes e depois do 25/4, "moldou" tantas cabecinhas mandantes. E tem seguidores onde menos se espera. No fundo, é o que diz a Helena Matos: "como numa grotesca repetição de vergonhas passadas, vemos que estão criadas as circunstâncias para se começar a negociar talhões da liberdade de expressão". Já sabem, quem for "licencioso", leva.
ENTRETANTO...
... da cabeça luminosa do dr. Alberto Costa brotou a ideia de mais uma comissãozinha para as escutas telefónicas. Isto depois do governo do "bonzinho" Guterres, de que ele fez parte, ter escancarado as portas à devassa em nome da "reforma" do processo penal que, volta não volta, é "reformado", tipo prato "ao momento". O meu amigo Rogério Alves advertiu, com razão, o ministro no sentido de ele evitar "soltar" estas ideias. Em vão. Ele primeiro "solta-as" e depois logo se vê. E o dr. Costa nem era dos que tinham começado mal.
GOSTOS
Eu abomino o 24 Horas. Todavia gosto disto e disto. Ou seja - e sobretudo - gosto de poder não gostar do 24 Horas. E também não gosto de ver ninguém ser e gostar de ser tratado como "vaca sagrada", seja acusador ou defensor. "Administrar a justiça", como vem na constituição, é outra coisa. Dessa, quando é a sério, gosto.
PAR DELICATESSE
A LINHA FEITICEIRA
"Melville dizia: "Se dissermos dadas as necessidades da argumentação que ele é louco, então eu preferiria ser louco a sábio... gosto de todos os homens que mergulham. Qualquer peixe pode nadar perto da superfície, mas é preciso ser-se uma grande baleia para descer a cinco milhas e mais... Os mergulhadores do pensamento voltaram à superfície com os olhos injectados de sangue desde o princípio do mundo." Reconhecemos com facilidade que há perigo nos exercícios físicos extremos, mas o pensamento é também um exercício extremo e rarefeito. A partir do momento em que pensamos, enfrentamos necessariamente uma linha onde se jogam a vida e a morte, a razão e a loucura, e esta linha arrasta-nos. Só podemos pensar nesta linha de feiticeira, faltando dizer que não estamos forçosamente condenados a perder, que não estamos forçosamente condenados à loucura e à morte."
Gilles Deleuze, Conversações
15.2.06
ESQUIZOFRENIA
Parece estar a gerar-se um pequeno movimento na blogosfera mais "política" no sentido de Freitas do Amaral ser removido oportunamente do governo. Não sei se é assim que Sócrates "funciona" ou se comove. A ver vamos. De qualquer maneira, todas as "reacções", acções e omissões de Freitas nos remetem para o "antigamente". Não apenas para o "antigamente" no sentido de "antigo regime", mas para uma coisa mais "ontológica" e grave que revela a falta de densidade da criatura que se reclama "centrista" (este "centrismo", diga-se de passagem, também é politicamente uma nulidade). Freitas é um homem permanentemente "desfocado" e, em política, isso é pura esquizofrenia. Como se diz na gíria, ele é "muito antigo" mesmo quando quis ser muito "moderno", como nas posições extravagantes contra os EUA. E é para esse "antigamente" que, mais tarde ou mais cedo, regressará.
COM POUCO
Pela enésima vez, o governo prepara-se para alterar a legislação em matéria de processo penal. Da última vez que o PS se meteu nisto, com outro Costa, o António, "os efeitos" acabaram por se estatelar precisamente aos pés de António Costa, na altura líder parlamentar do partido. Em Portugal, país onde abundam juristas e jurisconsultos, é forçoso empregá-los a legislar. Não existe um módico de estabilidade legislativa em praticamente sector nenhum. Cada governante que passa, espreme-se para deixar uma "marca". Alberto Costa, já na encarnação "guterrista" de 96, sonhava com o cargo de ministro da Justiça. Sócrates fez-lhe a vontade. E Costa, naturalmente, quer que a "história" o consagre. Consola-se com pouco.
O DEPUTADO
"O ENVELOPE 9"
"À pala" do "envelope 9" - aquela espécie de lista telefónica elaborada à volta do processo "Casa Pia" da qual constava, entre outros, o número da cabeleireira da Sra. de Souto Moura e o telefone fixo do dr. Sampaio -, agentes da PJ, "comandados" por um juíz de instrução criminal e por magistrados do MP, irromperam pela instalações do tablóide 24 Horas, mandaram parar os computadores, fizeram cópias de discos rígidos e, fatalmente, constituiram arguidos alguns jornalistas. Foi por causa deste "envelope 9" que o dr. Sampaio falou ao país, indignado, há cerca de um mês, prometendo levar a coisa até às últimas "consequências". Foi igualmente por causa do "envelope 9" que o sr. PGR estimou "inquirir" tudo rapidamente e, por o não ter feito, apareceu a "dar explicações" no Parlamento em que o titubeante contraditório político permitiu que "brilhasse". É, pois, aparentemente no âmbito do tal processo de investigação "rápida" que esta investida contra o 24 Horas se insere. Eu detesto o 24 Horas, naturalmente. Todavia não posso deixar de relevar como "extraordinária" a "reacção" dos órgãos de investigação criminal, "apenas" quase um mês depois dos factos consumados. Se o tablóide publicou aquilo, alguém lho fez chegar. Nunca mais me hei-de esquecer de uma tarde, há uns anos, em que encontrei numa esplanada um então famoso jornalista especializado em "detectar" processos judiciais em "segredo de justiça" a ler tranquilamente uma cópia de uns autos quaisquer. Se eu quisesse, também a tinha lido. Tudo o que "rodeia" o caso Casa Pia normalmente fede. O "envelope 9" é apenas mais uma peripécia e é bem provável que as "buscas" incluam ainda os escritórios de alguns advogados de defesa. De acordo com as autoridades criminais, houve "acesso indevido a dados pessoais". Pois houve. Resta saber a quem é que esses "dados pessoais" estavam confiados e quem é que promoveu o tal "acesso indevido". Os jornais, tablóides ou não, precisam de sangue, suor e lágrimas como de pão para a boca. A questão é achar o dador. Será que é isso que procuram? A sério?
A RELIGIÃO OFICIAL
"O Ocidente que deixou de acreditar fosse no que fosse, acredita fervorosamente na saúde. Não se percebe este amor ao corpo. Um indivíduo que não fume, que não beba, que se obrigue disciplinadamente a uma dieta punitiva e faça exercício sem parar ganha o extraordinário privilégio de trabalhar muito mais, durante muito mais tempo. Ou, pior ainda, acaba por cair numa velhice patética e por morrer entubado e espicaçado e com médicos que o tratam como quem trata o problema de uma rã. Não espanta que a esquerda goste deste exercício de melhoramento do homem. É repressivo e abre um belo e vasto campo à intolerância dos não-fumadores. Quando qualquer mentecapto pode perseguir um tabagista como um ente sub-humano, a populaça aprecia. Até Hitler era dado a esse desporto. Como dizia o outro, não tarda muito que ninguém se lembre como a vida era doce, antes da saúde se tornar a religião oficial."
DESEJOS
Como corpos belos de mortos que não envelheceram
e estão fechados, com lágrimas, em esplêndida tumba grandiosa,
com rosas na cabeça e nos pés jasmim -
desse modo parecem os desejos que desapareceram
sem serem cumpridos, sem nenhum deles ser dignado assim
com uma noite do prazer, ou manhã dele luminosa.
Konstandinos Kavafis
APROXIMAÇÕES AO CARNAVAL
Quando eu for grande, quero ser Fátima. Todos os portugueses de boa-fé que se dirigem ordeiramente às repartições públicas para cumprirem as suas obrigações como cidadãos, ponham os olhos nos bons exemplos e não saiam de casa.
ALGUNS ANTECEDENTES MITOLÓGICOS
A águia sublevou Ganimedes. Três facas
no chão de encontro a uma parede incendiada.
A submissa ferocidade do amor.
Nunca soube de onde vinha. Vinha. Tocava
à porta, tomávamos um café. Saía.
O que tentamos para amarem o que somos.
Na selva de interditos o longe de dentro
tem a medo sossegos sem nenhum lugar.
Joaquim Manuel Magalhães
14.2.06
UNS TÊM, OUTROS NÃO
LUTO DO AMOR
Rick: You know what I want to hear.
Sam: No, I don't.
Rick: You played it for her, you can play it for me!
Sam: Well, I don't think I can remember...
Rick: If she can stand it, I can! Play it!
Nota do Dia de São Valentim: A nenhum dos bimbos que vi por aí entrelaçados e pendurados uns nos outros, entre sacos e ramos de flores, este curto "diálogo" deverá dizer grande coisa. Apesar de pretensiosa e "arrogante", comme ils disent, a Duras "saíasse" às vezes com umas "tiradas" felizes. Todo o amor é luto do amor.
MAE WEST
A "diva" da Carla é hoje Mae West, com uma frase invejável, sobretudo no dia idiota de São Valentim: "I used to be Snow White, but I drifted." A lembrança de Mae West trouxe-me de volta a RTP a preto e branco e uma idade mais razoável. Dela retém-se sobretudo a voz, a colocação arrastada da voz, e o ar "gingão" com que deslizava. Durou muito. Dizia que o segredo de tamanha longevidade, entre outras coisas, se devia aos clisteres diários e a um rigoroso regime sexual "mediterrânico" que passava por "comer" boxeurs acabadinhos de sair do ringue, ensanguentados e suados, como lhes competia. Grande mulher, a Mae West.
BICHO CARPINTEIRO
"Agora o clima é de confiança". Não tinha o meu amigo Medeiros Ferreira, um institucionalista de esquerda, por um cínico. Julgava que isso era um exclusivo dos pessimistas "neuróticos" (também os há em versão optimista), alinhados precariamente à "direita". Todavia, bem vindo ao clube. Ao primeiro, naturalmente.
A MEDALHA KHOMEINI
Numa entrevista à Antena 1, o embaixador iraniano em Lisboa diz que a reacção mais acertada na questão dos cartoons veio do governo português através do comunicado do nosso Ministério dos Negócios Estrangeiros. Para quando uma medalha Khomeini para Freitas do Amaral?
"DIA DOS NAMORADOS"
MELVIN: Okay, I got a real great compliment for you and it's true.
CAROL : I am so afraid you're about to say something awful...
MELVIN : Don't be pessimistic. It's not your style. Okay... Here I goes... Clearly a mistake. I have this - what? Ailment... And my doctor - a shrink... who I used to see all the time... he says 50 or 60 percent of the time a pill can really help. I hate pills. Very dangerous things, pills. "Hate," I am using the word "hate" about pills. My compliment is that when you came to my house that time and told me how you'd never - well, you were there, you know...The next morning I started taking these pills.
CAROL: I don't quite get how that's a compliment for me.
MELVIN: You make me want to be a better man.
Nota: Este "diálogo" passa-se no cinema, como não podia deixar de ser. Aliás, os respectivos protagonistas receberam - valha lá isso o que valer - os óscares para os melhores actores. A realidade, nua e crua, é bem mais prosaica. Florzinhas na mão, sorrisos idiotas na cara e donos de lojas contentes. Até do "amor" o desejo maioritário consegue fazer um negócio. I don't want to be a better man.
13.2.06
LER
O Milagre de Fátima, de Constança Cunha e Sá. Civilizados e "europeus"? Como no "Pai Tirano", "nem me lo digas"
HOLZWEGE
Há pequenos sinais reveladores. Este fim de semana, estava eu encostado ao balcão do café da FNAC, olhando para lado nenhum, quando me fixei numa boa meia dúzia de televisões, tipo plasma, a funcionar adiante. Nelas tocava uma orquestra sinfónica - parecia um documentário sobre um ensaio- e, de repente, reparei no maestro. Era Valery Gergiev, seguramente um dos bons da actualidade , presentemente à frente da Orquestra Filarmónica de Roterdão. Naquele instante realizei como a minha vida mudou estupidamente em dois ou três anos. Partiu numa direcção inesperada, diria Marguerite Duras. Errada, acrescentaria eu. Conheci Gergiev na Ópera de Zurique, numa estreia de Benvenuto Cellini, de Berlioz, dirigida por John Eliot Gardiner. Fui ali tratar de pormenores relacionados com uma co-produção do Teatro Nacional de São Carlos com o Teatro Mariinski de S. Petersburgo, onde, salvo erro, Gergiev era director artístico. Agora Gergiev reapareceu-me num plasma, em Lisboa, lá onde ele nunca deixou de estar: no meio da música, à frente de uns solistas e de uma orquestra. Ao ver isso e acabando de beber o café, percebi que me tinha perdido no caminho.
PENSAMENTOS
Ouço um jogador da selecção nacional, Cristiano Ronaldo, a dizer qualquer coisa como "temos que pensar grande". Ele "pensa" com o quê?
VENERAS
Jorge Sampaio está de saída. É bonzinho, em geral. Como "pessoa", digo eu. Todavia não é ainda hoje que me apetece escrever o seu epitáfio presidencial. Há dias, na TVI, o Miguel Sousa Tavares chamou a atenção para o facto de Sampaio andar a distribuir condecorações como caramelos, de tal maneira que alguém que passasse num perímetro de 50 metros ao redor do Palácio de Belém podia correr o risco de sair de lá condecorado. Os presidentes banalizaram as condecorações a um ponto tal que constitui verdadeiro motivo de distinção não exibir nenhuma. Calhou a vez - de passar pelo tal perímetro - ao director do Teatro Nacional de São Carlos, o dr. Paolo Pinamonti, e a Ana Lacerda, a "primeira bailarina" da Companhia Nacional de Bailado. Até ao fim, a outros há-de calhar. Só espero que Cavaco Silva modere esta "condecoratice" aguda e cortesã dos últimos anos. Fora isso, e como dizia o outro, o que é que uma venera interessa para a prova de Deus?
VELHAS E NOVAS AMEAÇAS
Há dias assim, de imensa felicidade por ser português. Então não é que o Estado, a partir de hoje, me imunizou definitivamente contra "agentes microbiológicos e tóxicos, passíveis de serem utilizados em ataques terroristas"? Esta maravilha técnico-política permite-me, no mínimo, reduzir para metade a dose de tranquilizantes e venerar, de novo e respeitosamente, a instituição militar. É dela que brota os - preparem-se - "Laboratórios de Defesa Biológica e de Bromatologia do Exército Português". Estas venerandas instituições, como o nome indica, vão proteger-nos de tudo o que é ataque terrorista na vertente das "bactérias, estirpes modificadas e micro-organismos que possam ser usados em ataques biológicos". Segundo o ministro da Defesa, as "novas ameaças que a sociedade portuguesa tem de enfrentar e para as quais o Estado tem de se preparar" justificam esta inauguração. Não sei se alguma vez os terroristas terão reparado em nós. Tenho sérias dúvidas e, nessa matéria, a Espanha está primeiro e muito longe. Nem creio que os micro-organismos se interessem sequer vagamente por isto. O ministro fala de "novas ameaças". Sim senhor, tem razão. Todavia, quem é que nos protege das "velhas" ameças, que é como quem diz, de nós mesmos?
NEXT
"It's an odd thing to look back on the world, to watch those I left behind. Each in her own way so brave, so determined, and so very desperate. Desperate to venture out, but afraid of what she'll miss when she goes. Desperate to get everything she wants, even when she's not exactly sure of what that is. Desperate for life to be perfect again, although she realizes it never really was. Desperate for a better future, if she can find a way to escape her past. I not only watch, I cheer them on, these amazing women. I hope so much they'll find what they're looking for. But I know not all of them will. Sadly, that’s just not the way life works. Not everyone gets a happy ending."
É isso mesmo. Desesperadas e "condensadas" em dvd's, as "donas de casa" mais famosas do planeta, vieram parar-me às mãos. Da última vez que nos "encontrámos", a morta/narradora encerrava a 1ª série com estas "reflexões". Na realidade, não é bem assim que a vida funciona. Nem toda a gente tem finais felizes.
12.2.06
CADA CAVADELA SUA MINHOCA
O doutor Freitas do Amaral voltou a falar. Desta vez em Évora onde, com Jorge Sampaio, andou a passear Aga Khan. Num momento digno da pior dramaturgia da ex-FNAT, em boa hora recuperada para o Teatro Nacional que reside no Rossio, Freitas advertiu solenemente que "nós é que somos os agressores" (leia-se "nós", os bárbaros ocidentais). Depois, num exercício de beatitude multiculturalista aprendida à pressa num corredor esconso das Nações Unidas, o nossso ministro dos Negócios Estrangeiros, sem se rir, propôs uma espécie de "campeonato de futebol euro-árabe" para "apaziguar" os espíritos. Não sei se José Sócrates já avaliou no que é que se anda a meter com estas "cavadelas" de Freitas do Amaral. Até agora tem sido só ele a falar. Todavia, e apesar da pré-demência das declarações, parece-me que Freitas, que é simultaneamente ministro de Estado, "fala" pelo governo que Sócrates dirige. Assim sendo, eu tenho que perguntar: afinal a que é que preside Sócrates?
Adenda: Ainda bem que o José Pacheco Pereira também viu e ouviu o que eu vi e ouvi, não fosse eu acusado de má língua.
ATINGIDOS PELA CEGUEIRA
Devagarinho, sem um murmúrio e em concordância com a "natureza das coisas", a "gripe das aves" vai chegando à "civilização". Na Grécia e na Itália, precisamente os berços da dita, apareceram cisnes infectados com a estirpe mais violenta. Tinham logo que ser cisnes, animais cujo porte altivo e beleza indismentível dificilmente associamos à ideia da morte, salvo nas metáforas musicais de Piotr Iyitch Tchaikovsky e de Camille Saint-Saens. Todavia é um espectro de morte anunciada que mansamente pode descer sobre a Europa e, se assim for, não haverá Luz que nos redima. Os burocratas da medicina e da "saúde pública" garantem, como de costume, que estão prevenidos e que andam a cuidar da nossa "prevenção". Não tarda instalar-se-á um pequeno pânico e o alarmismo populista não conhece limites, muito menos "razoáveis" ou científicos. Os deuses andam definitivamente zangados connosco e escolheram o velho Olimpo para o demonstrar. Na sua peça "europeia", A Morte de Empédocles, Hölderlin escreve que aos mortais nada é dado de graça: "aquele que olhou para mais alto do que podem os mortais/agora, tacteia, atingido pela cegueira".
"O CHOQUE DAS CIVILIZAÇÕES - 3"
"Manyon [Julian. jornalista do Spectator] perguntou há uma semana a Abu Tir, outro chefe do Hamas: "Vão acabar com as missões suicidas contra civis?". E Abu Tir nem sequer fingiu: "Se o ocupante tem medo dessas operações, que saia da nossa terra". É com esta gente que, atrás de Chirac e de Putin, Freitas do Amaral se prepara para "dialogar". Um "diálogo" que dispensa a garantia do reconhecimento de Israel e da extinção do braço armado do Hamas. Pior ainda, um "diálogo" que desfaz gratuitamente a posição comum da América e da "Europa"na matéria. O homem perdeu a cabeça."
Vasco Pulido Valente in O Espectro
"O CHOQUE DAS CIVILIZAÇÕES" - 2
O Paulo Gorjão, sempre generoso, sugeriu-me a leitura do "original" de Samuel Huntington. Cá está, com as ressalvas que a patine do tempo e a "história" mais recente aconselham."Western ideas of individualism, liberalism, constitutionalism, human rights, equality, liberty, the rule of law, democracy, free markets, the separation of church and state, often have little resonance in Islamic, Confucian, Japanese, Hindu, Buddhist or Orthodox cultures. Western efforts to propagate such ideas produce instead a reaction against "human rights imperialism" and a reaffirmation of indigenous values, as can be seen in the support for religious fundamentalism by the younger generation in non-Western cultures."
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