16.4.08

O IMPÉRIO TAGARELA

Isabel Pires de Lima passou praticamente todo o mandato de ministra da cultura na ilusão de que "vivia" no Hermitage. Pinto Ribeiro também já arranjou um Hermitage privativo com o "acordo ortográfico". O resto é com as "produções fictícias". Por isso é mais do que oportuno reproduzir o artigo de Rui Ramos no Público. Não vale a pena gastar mais português com o assunto.

«Já venho tarde, mas não queria deixar de saudar a boa nova. Não me refiro à baixa do IVA, anunciada pelo ministro das Finanças, mas à nossa "expansão", prevista pelo ministro da Cultura. É verdade: vamos expandir-nos. Está para chegar um Portugal maior. Talvez a sua população e riqueza até venham a diminuir, mas que importa? Temos uma arma secreta para conquistar o mundo: aquela que Fernando Pessoa insinuou maliciosamente ser a "pátria" dele - a língua portuguesa. É o que nos prometem os crentes do Acordo Ortográfico: um Reich na ponta da língua. Não vou discutir ortografia, mas os termos curiosos em que a temos debatido nas últimas semanas. De um lado, falaram-nos do "c" de "facto" com a intransigência possessiva que os sérvios dedicam ao Kosovo, e avaliou-se o Acordo "estrategicamente", como se estivéssemos perante uma nova partilha de África, com o Brasil no papel oitocentista da Inglaterra. Do outro lado, recomendaram-nos a nova grafia como a oportunidade de não "ficar aqui como uma espécie de dialecto" (horror), e podermos desfilar ao lado do Brasil na "afirmação de um poder à escala mundial" (segundo o nosso entusiasmado embaixador em Brasília). Acho comovedor este uso despudorado da linguagem típica do imperialismo ("expansão", "estratégia", "afirmação do poder à escala mundial", etc.) para nos referirmos à língua que partilhamos com mais umas dezenas de milhões de pessoas de outras origens e nacionalidades. Quando nos puxam pela língua, acontece-nos isto: de repente, este país pachorrento e decadente revela-se uma potência beligerante, ciosa das suas aquisições e decidida a novas conquistas. Sim, porque através da "pátria" de Pessoa, nós somos grandes. Tal como a casa da velha canção brasileira, o nosso "império" não tem soldados, nem dinheiro, mas é feito com muito esmero - da língua que outros usam na América, na África e (segundo gostamos de acreditar) na Ásia. E assim prosseguimos a nossa expansão ultramarina, por mais que ninguém dê por isso. Definitivamente, continuamos a não ser um país pequeno. No tempo do Estado Novo, isso provava-se com os mapas das colónias; agora, pacífica e correctamente instalados em democracia, evocamos a "quarta língua a nível mundial", e os seus "200 milhões" de súbditos. É compreensível. No fundo, há algo de deprimente nas nações reduzidas. George Simenon dizia que ser belga é como não ter país. E talvez por isso, muita gente está preparada para lhe atribuir a ele ou a Hergé, tal como aos suíços Rousseau e Constant, uma pátria (a França) mais consentânea com a sua grandeza individual. As elites portuguesas, que durante a Monarquia sonharam fazer aqui um país tão próspero como a Bélgica e durante a I República tão democrático como a Suíça, nunca se conformaram com o estatuto de pequeno país que era o dessas nações, apesar de liberais e ricas. E depois de perdida a soberania com que nos ampliámos em África, agarrámo-nos à língua, a ver se por aí continuávamos a fazer uma sombra grande no mundo. Não nos fica mal desejarmos ser muito mais do que aquilo que somos. O que talvez seja menos recomendável é o modo como usamos esta grandeza imaginária para nos pouparmos ao reflexo da nossa realidade. A Europa pesa cada vez menos no mundo, e Portugal pesa cada vez menos na Europa. A língua é a balança avariada com que nos atribuímos robustez. Infelizmente, tudo o que assim sobe acaba por descer: eis que a Venezuela proíbe às suas crianças os Simpson e quer (como compensação?) ensinar-lhes português - e logo o nosso Governo tem de confessar que nos falta dinheiro e pessoal para acompanhar o último capricho de Chávez. O Brasil, muito citado acerca do Acordo Ortográfico, forma outro capítulo pungente do nosso irrealismo. Nunca percebemos que a ignorância mútua, ritualmente lamentada, não está à mercê de um "acordo". Fingimos desconhecer o fenómeno do "nativismo" no Brasil, que faz com que por cada Gilberto Freyre haja dez Sérgio Buarque de Holanda, ardendo em fervor antilusitano. Imaginamos que a incapacidade dos livros portugueses para hoje chegarem onde chegou Cabral em 1500 se deve simplesmente ao "c" de "facto". Nem sequer admitimos que o Brasil, no fundo, não nos importa demasiado. Vamos lá de férias: quantos aproveitam para ir ao teatro ou às livrarias? E quantos conhecem a política ou os escritores mais recentes do Brasil? A verdade é que o Brasil ainda não é suficientemente interessante para nós, e nós já não somos suficientemente interessantes para o Brasil. O resto é conversa de um império de conversa.»

6 comentários:

Anónimo disse...

Mesmo que o Carlos Reis (a desgraça que se viu...) leia o texto de Rui Ramos, ficará na mesma. Pertence à escola do "eng." (entre aspas, claro) Sócrates, para quem a evidência é uma batata.
E da "lídica cabecinha", definitivamente presa do total vazio que a caracteriza, nada há a esperar.
E não saimos desta miséria.

de.puta.madre disse...

E ainda bem! Com os espanhóis aqui tão perto! Se temos fiesta para quê o Samba!

Zé Luís disse...

Realmente...

Anónimo disse...

Vi apenas uma telenovela brasileira. Chegou. Não esqueço a atitude de uns parvoides brasileiros a qurerem obrigar, na Caparica, portugueses a beijar a bandeira brasileira. Não desconheço a forma como no Brasil muitos brasileiros, mesmo intelectualizados, achincalham os portugueses.Continuarei a escrever o português de antes do acordo que uma chusma de vendilhões vão fazer aprovar.

Carlos Medina Ribeiro disse...

Por mim, podem fazer e desfazer os acordos ortográficos que quiserem, incluindo coisas como a introdução, 'desintrodução' e reintrodução do "Y" que, como se sabe, já existiu, deixou de existir e vem aí outra vez.
Dito isto, deixo a questão: o que é mais importante para um debate sério que envolva a defesa da língua portuguesa: uma interminável discussão acerca dos "C" e dos "P" ou - por exemplo - o facto de ser uma aventura encontrar certos livros de José Rodrigues Miguéis, como, p. ex., o «Léah e outras Histórias» (referido por Joaquim Letria aqui), que só encontrei num alfarrabista?!

Zé Paulo Gouvêa Lemos disse...

Embora muito bem escrito e até certo ponto bem estruturada a defesa do "desacordo" pelo Rui Ramos, vejo uma lógica um tanto egoísta na relação colocada entre Portugal e a língua portuguesa.

Também, como luso-moçambicano residente no Brasil fazem 33 anos,não posso deixar como nota o de ficar um tanto triste com posicionamentos como o aqui colocado pelo Cáustico, que afirmo que como regra o que o mesmo diz não é verdade, e que não sendo não deve ser divulgado desta forma, ainda mais que não tem nada, absolutamente nada a haver com o tema em debate, ou pelo menos não deveria ter.

Bom mesmo, foi ter vindo aqui parar por uma referência feita no "Espumadamente" e assim acabei por encontrar no "Portugal dos Pequeninos" mais um espaço a ser visitado.