5.4.08

AUTO-RETRATO

«Há muito que deixei de investir nas pessoas; corrijo, só nelas me aprofundo após prova de absoluta sanidade, atestado de serenidade, limpidez de intenções e coração limpo, urbanidade e lealdade. Em suma, abandonei em definitivo a idade em que, tardiamente, persistia em equivocar-me perante um sorriso, uma palavra amável ou um elogio. Os poucos amigos que tenho censuram-me o bisonho semblante, a falta de habilidade para o convívio, a sempre esperada recusa para um jantar, o aparente desinteresse pelas doenças e operações alheias, as conversas sobre terceiros [ausentes], a indisponibilidade para "engrupar", o gosto pelo isolamento. Posso falar durante horas, rir-me a bandeiras despregadas, brincar, anedotar e, até, fazer a rábula do palhaço, mas só o faço com quatro ou cinco amigos, familiares ou aquelas raras pessoas que, não sendo amigas, ainda me permitem obedecer ao conselho da intuição. Estou absolutamente convencido do desperdício da forma imediata do gregarismo - aquela para a qual nos empurra a solidão - bem como daquela chamada amizade que esconde um interesse, um negócio ou um pedido.»

Miguel Castelo-Branco, in Combustões, e João Gonçalves in Portugal dos Pequeninos

12 comentários:

Catarina disse...

Eu, pelo contrário, só invisto nas pessoas quando tenho prova que elas não são absolutamente sãs (prefiro aquela fracção da demência), quando não são absolutamente serenas, quando não têm limpidez de intenções (a transparência é um mito e, pior que isso, um mito perigoso) e quando não têm um coração limpo (não sei o que isso é, e não gosto de metáforas com a palavra coração). Os homens (e as mulheres) não são, em geral, coisa que preste, mas andar à cata de um "coração limpo" contém algo de cretino, de uma arrogância condenada ao fracasso. Eu gosto do isolamento por si mesmo, não preciso de invocar um ressabiamento mal disfarçado pela sociedade. Principalmente porque aqueles que escolhem a solidão devem assumir com consciência as consequências, como o facto de morrerem sós.

Anónimo disse...

Catarina,todos morrem sós.

Anónimo disse...

Escolher a solidão? Nenhum homem pode escolher ser homem, é-o. A solidão constitui-nos a todos. O que nos resta é viver em conformidade com o que somos, ou levar a vida a fingir que somos outra coisa, sociáveis, por exemplo. O fingimento, porém, não anula o facto de se estar radicalmente só. Às vezes as solidões encontram-se, mas isso serve apenas para confirmar essa solidão. Sem drama, sem metafísica, a não ser a de comer chocolates. Não há metafísica da solidão, apenas uma física. Também não há qualquer consequência para quem aceita a solidão como a sua natureza. Morrer só é apenas o que acontece a qualquer um. Quando se é leal à sua natureza, o que é que nos poderá iludir?

Anónimo disse...

Pois é eu também pertenço aos cretinos que procuram corações limpos,cabeças "lavadas" e sãs e olhe que tenho encontrado alguns bons exemplares.
Pertenço à classe de felizardas que pode dizer que um bom amigo(a) nunca a desiludiu até agora. A resposta está no 1.º parágrafo do MCB que muito admiro.

Anónimo disse...

Afinal não há parágrafo: o texto é uma esparsa...

Anónimo disse...

revejo-me neste texto.
J. Varanda

Nuno Castelo-Branco disse...

Solução simples, à vista de todos e que conta com antecedentes históricos: o psd e o ps que assinem uma espécie de Tordesilhas que lhes garanta as respectivas coutadas. Desta forma, acaba-se a "pornochachada" (?) a que estamos habituados. Era uma óptima ocasião para enviar qualquer coisa ao youtube.

Anónimo disse...

começa o período em que certos animais investem no campo pequeno

Anónimo disse...

Já adiantado na jornada da vida, comecei lutando contra uma terrível timidez que, no isolamento do interior, era vulgar. Depois especializei-me nas relações a dois e, só depois, consegui alargar o cículo. O coração aberto trouxe-me alguns dissabores e muitas vezes tive de lamber as feridas. Mas consegui (poucos) bons amigos. Sócrates, o outro, quando lhe lamentaram a pequenez da casa, respondeu: "Oxalá consiga enchê-la de amigos". Essa dificuldade já vem de longe e perdurará: a perfeição não é dos humanos.

Anónimo disse...

Quem tem filhos sabe que eles crescem também com o sofrimento e nele realizam aprendizagens muito sólidas.
Extrapolando o assunto, em 2009 estou mortinha por ver o que este povinho apendeu...)):

Anónimo disse...

E eu... e eu... quqando posso e sempre que consigo...
r.

Unknown disse...

"Death is a lonely business",Bradbury "dixit".
Tal qual a vida.