Também tenho uma "prenda" para os meus leitores. Li muita coisa ao longo do ano. De portugueses, suponho que não li nada. De outros, parece-me dispensável o derradeiro Roth, Indignation. Prefiro as imediatas prosas anteriores sobre o envelhecimento e a morte. Li e reli muito Sloterdijk. Nunca o largo, aliás. "Um homem muito procurado", de John Le Carré, "recupera" um bom escritor de um relativamente aborrecido "O canto da missão". Por isso "ofereço" uma recomendação do ano passado e que me parece insubstituível. Há meses, para a Ler, o F.J. Viegas pediu-me para "explicar", em poucas linhas, "por que é que se devia ler As Benevolentes". Apesar da pretensão (é-me indiferente que leiam ou deixem de ler), alinhavei a pequena prosa que se segue a qual, pela primeira vez, "sai" na íntegra. A que foi editada na revista é diferente desta. Nunca me dei ao trabalho de perguntar porquê. Não me interessa. Mas imagino.
JONATHAN LITTELL, O NOVO MESTRE DA SUSPEITA
Correm os derradeiros anos da segunda guerra mundial. O narrador, ex-nazi convicto, olha agora para esse tempo com a melancolia da indiferença, sem remorsos nem pesos na consciência. É um ironista que reflecte sobre os escombros sem um vislumbre de arrependimento. O que foi, foi o que foi porque teve de ser assim, como se um determinismo amoral tivesse arrastado milhares de homens inteligentes para um abismo no qual, sem excessiva repugnância, experimentaram os cheiros e as cores da mais repugnante das mortes. As “memórias” de um antigo oficial nazi são o pretexto para Jonathan Littell “reconstruir” os derradeiros passos do regime de Hitler - para o Leste onde se atafulhou e perdeu –, recortando, vistos a partir do lado “deles” (até agora só tínhamos tido direito às versões romanceadas “correctas” da história, a dos vencedores), os perfis de homens do regime tal como eles existiram ou como o autor os ficcionou. “As Benevolentes” também é um imenso livro de história onde se surpreende a esquizofrénica burocracia do III Reich, algo a que Fest apelidou de improvisação organizada, já a caminho do seu fulgurante crepúsculo. No texto de Littell revela-se como o bem e o mal se misturam nas peripécias de uma vida pessoal e de uma narrativa colectiva sem que isso lhe confira um estatuto de fatalidade dentro da fatalidade que efectivamente foi. Revela-se como a ficção da realidade - a realidade e a ficção que coincidiam no III Reich - pode ser “ultrapassada” através de um passeio numa paisagem paradisíaca que deixou para trás o cheiro fétido de cadáveres ou o estampido de uma arma disparada contra a nuca anónima. Revela-se como Bach ou Monteverdi sublimavam a violência interior que massacra o adversário indefeso com uma tranquilidade que, devendo assustar o leitor, apenas o sossega umas quantas páginas mais adiante. Littell entendeu bem o que Arendt quis significar com a expressão “banalidade do mal” a propósito do julgamento de Eichmann em Jerusalém. A leitura mais simplista exclamaria: “lê-se e não se acredita”. Ora a “tese” de “As Benevolentes” é justamente a contrária. Lê-se e acredita-se e eu, narrador, acreditava especialmente. Por que é que “As Benevolentes” arrisca ser simultaneamente um dos grandes momentos da literatura contemporânea e uma tragédia clássica? Julgo que, enterrado o fantasma do “novo romance” e, sobretudo, quando se enchem escaparates com novos “romancistas”que nos vêm contar histórias de embalar que, de tão medíocres, acabam por ser pornográficas, Littell – provavelmente impossibilitado de escrever o que quer que seja depois deste “fresco “ monumental - emerge como o novo “mestre da suspeita”. O respeitável oficial das SS que nos explica a sua vida e a tenta perceber, anos volvidos sobre a catástrofe, é, no desalinho dessa “história” cruel, revista, corrigida e aumentada, o Deus sem fé que se esconde no coração do homem vazio de hoje. Crê-se, afinal, um justo nos antípodas da personagem da peça de Camus. Quem, de entre nós, poderá atirar a primeira pedra?
Correm os derradeiros anos da segunda guerra mundial. O narrador, ex-nazi convicto, olha agora para esse tempo com a melancolia da indiferença, sem remorsos nem pesos na consciência. É um ironista que reflecte sobre os escombros sem um vislumbre de arrependimento. O que foi, foi o que foi porque teve de ser assim, como se um determinismo amoral tivesse arrastado milhares de homens inteligentes para um abismo no qual, sem excessiva repugnância, experimentaram os cheiros e as cores da mais repugnante das mortes. As “memórias” de um antigo oficial nazi são o pretexto para Jonathan Littell “reconstruir” os derradeiros passos do regime de Hitler - para o Leste onde se atafulhou e perdeu –, recortando, vistos a partir do lado “deles” (até agora só tínhamos tido direito às versões romanceadas “correctas” da história, a dos vencedores), os perfis de homens do regime tal como eles existiram ou como o autor os ficcionou. “As Benevolentes” também é um imenso livro de história onde se surpreende a esquizofrénica burocracia do III Reich, algo a que Fest apelidou de improvisação organizada, já a caminho do seu fulgurante crepúsculo. No texto de Littell revela-se como o bem e o mal se misturam nas peripécias de uma vida pessoal e de uma narrativa colectiva sem que isso lhe confira um estatuto de fatalidade dentro da fatalidade que efectivamente foi. Revela-se como a ficção da realidade - a realidade e a ficção que coincidiam no III Reich - pode ser “ultrapassada” através de um passeio numa paisagem paradisíaca que deixou para trás o cheiro fétido de cadáveres ou o estampido de uma arma disparada contra a nuca anónima. Revela-se como Bach ou Monteverdi sublimavam a violência interior que massacra o adversário indefeso com uma tranquilidade que, devendo assustar o leitor, apenas o sossega umas quantas páginas mais adiante. Littell entendeu bem o que Arendt quis significar com a expressão “banalidade do mal” a propósito do julgamento de Eichmann em Jerusalém. A leitura mais simplista exclamaria: “lê-se e não se acredita”. Ora a “tese” de “As Benevolentes” é justamente a contrária. Lê-se e acredita-se e eu, narrador, acreditava especialmente. Por que é que “As Benevolentes” arrisca ser simultaneamente um dos grandes momentos da literatura contemporânea e uma tragédia clássica? Julgo que, enterrado o fantasma do “novo romance” e, sobretudo, quando se enchem escaparates com novos “romancistas”que nos vêm contar histórias de embalar que, de tão medíocres, acabam por ser pornográficas, Littell – provavelmente impossibilitado de escrever o que quer que seja depois deste “fresco “ monumental - emerge como o novo “mestre da suspeita”. O respeitável oficial das SS que nos explica a sua vida e a tenta perceber, anos volvidos sobre a catástrofe, é, no desalinho dessa “história” cruel, revista, corrigida e aumentada, o Deus sem fé que se esconde no coração do homem vazio de hoje. Crê-se, afinal, um justo nos antípodas da personagem da peça de Camus. Quem, de entre nós, poderá atirar a primeira pedra?
4 comentários:
das duas faces do ser humano: êxito-derrota, recordo um facínora que passou por portugal: jean lannes. insolente com D. João VI morreu, carregado de caricas, uns 5 anos depois meio-abandonado após a batalha de Aspern-Essling.
desejo que os dirigentes que hoje nos insultam tenham o mesmo triste fim.
comecei a ler Littell em francês por ser mais barato. os bufos do largo dos ratos são piores que as ss.
radical livre
Brilhante prospecção crítica! Certamente que o homem kitsch e o homem light, diligentemente lavrados pelo Regime dos Eventos, não pode sequer começar a compreeender o auto-retrato. Tanto pior para ele.
Abraço muito mais que Sazonal de Natal!
joshua
Erro ao dizer que Malaparte ("Kaputt") está presente no seu texto?
Aceite os votos de um Bom Natal.
Não li e não vou ler o livro. Basta-me este parágrafo(*) para que as Benevolentes me tenham marcado. Falta agora o principal.
Por vezes o que escreve irrita-me mas muitas vezes faz a diferença.
Obrigada pela sua "prenda."
(*) O respeitável oficial das SS que nos explica a sua vida e a tenta perceber, anos volvidos sobre a catástrofe, é, no desalinho dessa “história” cruel, revista, corrigida e aumentada, o Deus sem fé que se esconde no coração do homem vazio de hoje. Crê-se, afinal, um justo nos antípodas da personagem da peça de Camus. Quem, de entre nós, poderá atirar a primeira pedra?
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