Não somos perfeitos, graças a Deus. Eu, entre milhares de defeitos, terei - de acordo com algum pensamento politicamente correcto - um fascínio intenso pela personalidade de François Mitterrand cujo desaparecimento, há dez anos, a França pomposamente relembra. O próprio Mitterrand gostava de recordar que acreditava na força simbólica dos grandes gestos. Como presidente, como doente e, depois, mesmo já como morto, Mitterrand esculpiu a preceito o seu destino. E hoje, em Jarnac, sua terra natal, é outra vez a simbologia do grande gesto que leva até lá a França institucional - a da esquerda e a da direita - em peregrinação. As coisas que ele quis que se soubessem, só se souberam quando ele quis. Encenou o "guião" das suas "pompes funébres" e - basta ler as páginas e páginas que os hebdomadários franceses lhe vêm dedicando nos últimos dias - é tido genericamente por um príncipe. Mitterrand era o político completo, desses que não se fabricam mais. Luz e sombra, integridade e contradição, lealdade canina às amizades, impiedoso nas traições, duplicidade nos gestos, inteligência intuitiva, um sedutor pela palavra, tudo e mais do que isto foi François Mitterrand. O que temos mais próximo dele, "em grande" - Mário Soares - mesmo assim fica a milhas de distância. Mitterrand acreditava nas "forças do espírito" e avisou os franceses, na última vez que se lhes dirigiu como presidente, que os não abandonaria. A sua sombra vagueia na sociedade e da política francesas ombro a ombro com a do gigante De Gaulle. Mitterrand passou mais tempo a combater De Gaulle e o seu "golpe de estado permanente", como chamava à 5ª República, do que propriamente ao serviço da dita. Quando o fez, entre 1981 e 1995, na sua original concepção do verdadeiro exercício do poder, foi mais De Gaulle do que De Gaulle "lui même". Odiado e amado nas suas hostes e nas adversárias, "secou" a política francesa por muitos e bons anos. Chirac, apesar de esforçado e bem parecido, não consegue dar mais do que aquilo que se vê. Até no "post mortem", foi perfeito no seu desalinho magistral e perfeitamente controlado ao milímetro. Nas suas "Mémórias Inacabadas", Mitterrand, interrogado acerca do "sonho" que se abriu com a eleição de 1981, responde secamente que não é aos sessenta e cinco anos que se começa a sonhar. Todavia foi longe nesse sonho bem realista, sobretudo se pensarmos que, meses depois, lhe seria diagnosticada a doença fatal que o acompanharia, quase até ao fim, em segredo. Num livro notável que escreveu "a meias" com Elie Wiesel, Mémoire à Deux Voix, Mitterrand, que não gostava de pessoas "transparentes", explica-se até onde deseja e tanto quanto um homem como ele se pode "explicar". Wiesel pergunta-lhe: "gostaria de ainda estar vivo em 2010 para assistir ao que estará a acontecer? é o seu presente que o preocupa ou é o futuro imediato?". E Mitterrand responde: "Não. À semelhança do que Willy Brandt quis que ficasse como seu epitáfio, eu diria que fiz o que pude".
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