16.1.05

PORTUGAL DOS PEQUENINOS III




O português revê-se no pequeno, vive no pequeno, abriga-se no pequeno e reconforta-se no pequeno: pequenos prazeres, pequenos amores, pequenas viagens, pequenas ideias ("pistas"... que se abrem aos milhares a cada pequeno ensaio). (...) A pequenez é a negação do excesso, e a nossa maneira de "estar certo" ou "ser certinho" - o nosso "justo meio". (...) Não vemos mais longe do que a ponta do nariz, quer dizer, mais longe do que as nossas fronteiras, a nossa região, a nossa cidade, a nossa família e, por fim, mais longe do que os limites do nosso corpo. Não vemos mais longe do que a vida imediata, colados a um falso presente sem passado (as narrativas míticas dos Reis e dos Descobrimentos já não alimentam o nosso presente) nem futuro (a Europa, como nosso futuro, são trevas em que ninguém pensa, nem quer pensar).



Os portugueses não sabem falar uns com os outros, nem dialogar, nem debater, nem conversar. Duas razões concorrem para que tal aconteça: o movimento saltitante com que passam de um assunto a outro e a incapacidade de ouvir. Não se pode dizer que a segunda decorra da primeira, porque o inverso também é verdade. Resultam as duas do facto de as falas não conseguirem atinar com um "tom" comum. Porquê? Paradoxalmente (ou perversamente), porque o que se procura é precisamente a discordância (não a discórdia) e, antes de tudo, ouvir o som da sua própria voz - pequeninamente, a afirmação autista de si, da fala pronunciada sem a preocupação de ser ouvida ou de ser compreendida (porque essa crença nem se pôe em dúvida, desde que eu me oiça). Produz-se assim uma algazarra insuportável, com todos a falar ao mesmo tempo, cada um com a sua veemência particular sem dar a devida atenção aos outros, seus "interlocutores".



O medo é uma estratégia para nada inscrever. Constitui-se, antes de mais, como medo de inscrever, quer dizer, de existir, de afrontar as forças do mundo desencadeando as suas próprias forças de vida. Medo de agir, de tomar decisões diferentes da norma vigente, medo de amar, de criar, de viver, medo de arriscar. A prudência é a lei do bom senso.(...) É preciso lembrar que a imagem de si, forjada pela lei, inconsciente ou semiconsciente, age sem cessar, como uma espécie de panóptico a que os indivíduos não podem fugir. Está no ar, na atmosfera, quer dizer, no olhar dos outros e, pior, no olhar interior do superego que todos corrói. É por isso que, quando se fala numa concreção de poder que combina velhas estruturas hierárquicas com a relação paranóica democrática, é esta que geralmente alimenta aquelas, abrindo espaço para o exercício do poder de pequenos déspotas (que podem surgir na administração, nos poderes públicos, nas empresas, nas escolas, nos partidos políticos), sempre prontos a pôr logo em funcionamento dispositivos panópticos que constroem a imagem de si. Por essa razão, a tentação do pequeno despotismo se tornou tão fácil e permanente na sociedade portuguesa actual.



Se o (actual) povo português fosse um povo de intensidades e não de sentimentos e de medo (como Fernando Pessoa caracterizava o povo espanhol contrapondo-o ao português), há muito que teríamos saído do estado de iliteracia e de fragilidade económica em que vivemos. Em vez disso, sofremos de muitos defeitos próprios das sociedades do terceiro mundo: absentismo no trabalho, inércia, dificuldade na formação e na aprendizagem, lentidão, falta de competitividade. Como se tivéssemos sido atingidos por uma doença que nos deixa diminuídos, meio exangues, com um défice de força vital.



A burocracia, o juridismo pertencem curiosamente àquele mesmo fundo que engendra a deambulação barroca do "ando por aí". O desejo de flutuar, de não entrar na vida real: o frenesim de tudo regimentar - o mínimo gesto, o mínimo sopro de existência - submetendo-os a uma regra. O juridismo paranóico de certos chefes e subchefes anseia por abolir toda a margem de tolerância na interpretação das leis: "só assim se mudará o país", classificado imediatamente de "república das bananas" onde tudo é permitido, onde tudo se consegue "à balda". Daí a necessidade imperativa e maníaca de notar, de registar o menor desvio, a mínima falta, como se a vida virtuosa e a cidadania perfeita resultassem do mais rigoroso cumprimento da lei.



Há, primeiro, que erradicar o medo da sociedade portuguesa. Conquistar a maioridade, dessubjectivando-se ao enfrentar o acontecimento. Fazer explodir a imagem de si. Porque todos nós andamos "pr' aqui" como Álvaro de Campos que dizia que "nunca conhe[ceu] quem tivesse levado porrada./Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo".


[A inveja] passou a ter uma existência social. Um dos seus efeitos possíveis imediatos é a paralisação de toda a dinâmica do novo. O que surge como diferente aparece como uma ameaça à igualdade que a inveja protege. Igualdade niveladora por baixo, (...), porque impede a expressão da singularidade: toda e qualquer manifestação de originalidade é considerada superior e rejeitada. O rumor, a calúnia, as estratégias múltiplas de exclusão que se desenvolvem no quadro do funcionamento do grupo acabam por vencer e eliminar o elemento novo que irrompia.

Sem comentários: