31.8.04

O BRONZE

Apareceu hoje no Público mais uma pérola "jurídica" ligada ao estafado processo Casa Pia, desta vez produzida por uma magistrada judicial. Uma juíza de turno da Boa Hora não resistiu a deixar a sua "marca" no prolixo processo e quis devolver à preventiva cinco dos arguidos. Entre outro argumentário, alegou que a medida "sossegará, com certeza, as eventuais vítimas deste processo e até potenciais vítimas nos meios sociais em que os arguidos se inserem, originando uma maior tranquilidade e paz social". Aos olhos da juíza Filipa Macedo isto é assim porque "os adolescentes vivem uma liberdade desmedida, passando os dias sozinhos e saindo à noite até altas horas da madrugada", o que os pode tornar "muito 'apelativos' nas suas indumentárias, pela descontracção com que actuam, pelo bronze e penteados que exibem, por indivíduos viciosos e podem ser considerados presas fáceis porque normalmente têm posses insuficientes para as solicitações da sociedade de consumo em que se integram e que os seduz". Esta extraordinária prosa, que mais parece inspirada num híbrido de Lombroso, Kavafis, Machado Pais e Carlos Castro, não convenceu, nem sequer o Ministério Público. Qualquer discípulo de Freud poderia talvez entreter-se a explicar. Eu não consigo. Num ensaio com mais de 50 anos, Eduardo Lourenço, partindo do Livro II da República de Platão, escreveu que "a justiça é apenas uma criação arbitrária da impotência ancestral e do medo dos outros". Este conceito tem, na terminologia burocrático-judiciária dos nossos dias, os seus equivalentes no "alarme social", na "tranquilidade e paz social", na "ordem pública", etc, termos estes que bastam para justificar quase tudo. Recomenda-se, por isso, parcimónia no seu uso. Porém, confesso que a parte que mais gostei no despacho da juíza, foi naturalmente a do "bronze" e dos "penteados" perseguidos avidamente por "indivíduos viciosos". É, sem dúvida, uma imagem perigosamente "apelativa".

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