29.8.04

JORNAL DO GATO




No tempo em que a "literatura portuguesa" era viva, houve polémicas, grupos, ódios e amizades que celebravam o gozo de escrever e de publicar. A censura ajudava a selar algumas solidariedades. A semi-clandestinidade desse mundo aguçava o engenho e dividia os interesses. Dentro do grupo dito surrealista, a propósito de tudo e de nada, mas sobretudo por causa do "espólio" António Maria Lisboa, prematuramente desaparecido aos vinte e poucos anos, e da sua respectiva publicitação, particularmente por Cesariny, este e Luiz Pacheco trocaram epistolografia vária e zangaram-se. Pacheco vagueava intermitentemente pelas pensões e pelas prisões, por reiterados "atentados ao pudor", e, nos intervalos, era editor. Cesariny saía do país e voltava. A Assírio&Alvim publicou agora uma reedição do Jornal do Gato, de Cesariny. Tem por epígrafe um esclarecimento: contribuição ao saneamento do livro pacheco versus cesariny edição pirata da editorial estampa colecção direcções velhíssimas. Cesariny refere-se ao tomo de Luiz Pacheco, Pacheco versus Cesariny, folhetim de feição epistolográfica, publicado pela Editorial Estampa, colecção Novas Direcções, em 1974. Aliás, não faz grande sentido ler o primeiro sem ter por perto o segundo. O excerto de uma carta de Pacheco "a Pepe Blanco, à Estampa, Palácio do Limoeiro, Dezembro, 59" e um outro de Cesariny a Pacheco, de 66, parecem "surrealistas" aos olhos do nosso bem atestado convencionalismo epocal. Graças a um Deus que não é deles, estão ambos vivos e continuam e recomendar-se contra o convencionalismo literato que inunda as prateleiras da "literatura" em português.


Da carta de Pacheco a Pepe Blanco:

(...) Tenho notado, também que a missa (dia de Natal houve missa solene, com um coro de angelicais assassinos) não tem aqui muitos adeptos entre a rapaziada [referindo-se aos detidos no Limoeiro]. Esses gajos católicos para a missa! berravam eles. Mas um respondeu: Que se foda Deus! Vim aqui encontrar o Toninho, o mano do Zanaga, o famoso criador do negócio das listas telefónicas recolhidas de táxi. Está inteiramente familiarizado com o ambiente e já me prestou bons serviços. A vida dele é um eterno vai-vem entre o Lá Fora e o Estar Aqui Dentro. É uma cara familiar aos guardas e aos espelhos. É um tipo fixe. Contou-me ele cenas horrorosas de concupiscência e a palavra encena já a pequena sílaba que faz supor aquilo mesmo a que me quero referir. Eu ainda vira muito pouco (mas algo já me farejava de tais actividades secretas), mas ele jura e tresjura que os rabos (rabos virgens, pouco mais ou menos) são muito baratos, por exemplo: um rabo de 12 anos, loiro! 1 cigarro; um rabo de 15 a 18, "teddy-boy" do Bolero Bar, 2 tostões; e assim por diante; V. leia esta tabela ao Cesariny, para o enraivecer e mostrar-lhe que o lugar dele é aqui. Com os 5 escudos que ele costuma pagar na área da fragatas, são capazes de lhe ir encomendar um rabo lá fora, um rabo de chinês (que são os mais remexidos) ou até mesmo um rabo de polícia (que são os mais apertados). Com 5 escudos tem direito a fotografia, águas quentes ou frias, e sobremesa.(...)

Da carta de Cesariny a Pacheco:

(...)A tua verdade histórica é a merda. Diferente da minha neste ponto: é possível que a minha vida tenha dado cabo de mim, ou eu cabo de mim nela; o amor que tenho à vida fez-me sempre evitar dar cabo da vida dos outros. Não "enterrei" ninguém sempre até á última quis a vida dos outros. Tu incluído. A tua pressa em dar cabo dos outros, diz-me que vida é. E que espécie de cabo. (...) "O senhor não é palhaço, o senhor é escritor". estas linhas do Lisboa, cantei-tas várias vezes, em vários tons. Soube isso no teu texto dos Doutores, Salvação e Menino, que continua a ser para mim o texto lúcido que, em literatura, a época forneceu. Soube-o de novo, com imensa alegria, na publicação do Teodolito. Diante de um texto tal hão-de curvar-se, sem querer, todos os merdas do literário lisboeta. E, o que é mais: pela primeira vez encontrava a tua humanidade, a tua forma natural de sorrir - tens o sorriso mais bondoso, espanta-te, de quantos vi a tentar abrir lábios: sai quase sempre careta, lá diz o Lautréamont - diante das calamidades. Melhor, eras o homem que se confessava isso, homem, e em que mundo assim, de que maneira! Nada a ver com os teus papelinhos acusatórios, de boa ou má esguelha, para a vida ou para a morte dos outros. Creio que não piorei o texto publicando-o com as "emendas", ou "chaves" que tu próprio aceitaste. Acho mesmo que ficou melhor, o que decerto te ofende. Outros textos tens parido de igual, ou maior altura? Este o Luiz Pacheco que conheço, o único que de facto existe e posso amar, mesmo conservando na gaveta, como conservo, e não esquecendo, não são para esquecer, feridas abertas. Em corpo frágil.

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