20.12.07

AS FÚRIAS


Como uma récita de ópera, uma sinfonia ou um concerto para violino e orquestra, um livro, nos seus primeiros acordes - as primeiras palavras - permite-nos perceber se o que se segue é grandioso. Não sou dado a ilusões, muito menos literárias. "As fúrias" de Jonathan Littell, tratadas e traduzidas como "As Benevolentes" (designação das Eumenides, as Erínias ou as Fúrias na tragédia de Ésquilo), é a grande tradução do ano (de Miguel Serras Pereira, na Dom Quixote). Oitocentas e noventa e três páginas, para ler, sem uma interrupção, nos horríveis quatro dias seguidinhos de natal que se avizinham. «Apesar dos meus vezos, e foram numerosos, continuei a ser dos que pensam que as únicas coisas indispensáveis à vida humana são o ar, o comer, o beber e a excreção, e a busca da verdade. O resto é facultativo (...). Se suspendermos o trabalho, as actividades banais, a agitação de todos os dias, para nos entregarmos seriamente a um pensamento, as coisas passam a ser completamente outras. Depressa as coisas começam a vir à tona, em vagas densas e negras. À noite, os sonhos desarticulam-se, desdobram-se, proliferam, e ao despertar deixam uma fina camada acre e húmida na cabeça, que leva muito tempo a dissolver-se. Nada de mal entendidos: não é de culpabilidade, de remorsos que aqui se trata. Isso existe também, sem dúvida, não quero negá-lo, mas penso que as coisas são muito mais complexas. Até mesmo um homem que não fez a guerra, que não teve de matar, sofrerá aquilo de que estou a falar. Regressam as pequenas maldades, a cobardia, a falsidade, os gestos mesquinhos que afligem todo e qualquer homem. Não é de admirar por isso que os homens tenham inventado o trabalho, o álcool, as conversas fiadas estéreis. Não é de admirar que a televisão tenha tanto sucesso. »

2 comentários:

nanda disse...

"Um pouco mais de sol...

"...
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade."

Sophia de Mello Breyner

Anónimo disse...

Vc é um bom propagandista da Fnac!