16.8.06

O GRANDE EXPLICADOR

Noutra encarnação, neste dia, desaparecia aquele que foi um dos mais geniais "mestres" da língua portuguesa e, seguramente, o maior intérprete da choldra chamada Portugal. Eça de Queirós, cá e lá fora, percebeu com muita clareza que esta treta jamais iria a lado algum. Dos costumes à política, o escritor diplomata deixou-nos - nos "romances", nos contos, nos jornais, nas impressões de viagens, nas cartas, nos "retratos" - a imagem mais "realista" e, por isso, a mais lúcida e a mais cruel da verdadeira tristeza que somos como "nação". "Vencidos da vida" é, simultaneamente, uma ironia e uma amargura. Eça e os seus companheiros foram "crucificados pelos aborrecidos". Todavia são aqueles e não estes que permanecem. Chapeau, pois, ao nosso grande explicador.

"Depois Carlos, outra vez sério, deu a sua theoria da vida, a theoria definitiva que elle deduzira da experiencia e que agora o governava. Era o fatalismo musulmano. Nada desejar e nada recear... Não se abandonar a uma esperança - nem a um desapontamento. Tudo aceitar, o que vem e o que foge, com a tranquillidade com que se acolhem as naturaes mudanças de dias agrestes e de dias suaves. E, n'esta placidez, deixar esse pedaço de materia organisada, que se chama o Eu, ir-se deteriorando e decompondo até reentrar e se perder no infinito Universo... Sobretudo não ter appetites. E, mais que tudo, não ter contrariedades.
Ega, em summa, concordava. Do que elle principalmente se convencera, n'esses estreitos annos de vida, era da inutilidade do todo o esforço. Não valia a pena dar um passo para alcançar coisa alguma na terra - porque tudo se resolve, como já ensinára o sabio do Ecclesiastes, em desillusão e poeira. - Se me dissessem que alli em baixo estava uma fortuna como a dos Rothschilds ou a corôa imperial de Carlos V, á minha espera, para serem minhas se eu para lá corresse, eu não apressava o passo... Não! Não sahia d'este passinho lento, prudente, correcto, seguro, que é o unico que se deve ter na vida. - Nem eu! acudiu Carlos com uma convicção decisiva. E ambos retardaram o passo, descendo para a rampa de Santos, como se aquelle fosse em verdade o caminho da vida, onde elles, certos de só encontrar ao fim desillusão e poeira, não devessem jámais avançar senão com lentidão e desdem. Já avistavam o Aterro, a sua longa fila de luzes. De repente Carlos teve um largo gesto de contrariedade: - Que ferro! E eu que vinha desde Paris com este appetite! Esqueci-me de mandar fazer hoje para o jantar um grande prato de paio com ervilhas. E agora já era tarde, lembrou Ega. Então Carlos, até ahi esquecido em memorias do passado e syntheses da existencia, pareceu ter inesperadamente consciencia da noite que cahira, dos candieiros accêsos. A um bico de gaz tirou o relogio. Eram seis e um quarto! - Oh, diabo!... E eu que disse ao Villaça e aos rapazes para estarem no Braganza pontualmente ás seis! Não apparecer por ahi uma tipoia!... - Espera! exclamou Ega. Lá vem um «americano», ainda o apanhamos. - Ainda o apanhamos! Os dois amigos lançaram o passo, largamente. E Carlos, que arrojára o charuto, ia dizendo na aragem fina e fria que lhes cortava a face: - Que raiva ter esquecido o paiosinho! Emfim, acabou-se. Ao menos assentamos a theoria definitiva da existencia. Com effeito, não vale a pena fazer um esforço, correr com ancia para coisa alguma... Ega, ao lado, ajuntava, offegante, atirando as pernas magras: - Nem para o amor, nem para a gloria, nem para o dinheiro, nem para o poder... A lanterna vermelha do «americano», ao longe, no escuro, parára. E foi em Carlos e em João da Ega uma esperança, outro esforço: - Ainda o apanhamos! - Ainda o apanhamos! De novo a lanterna deslisou, e fugiu. Então, para apanhar o «americano», os dois amigos romperam a correr desesperadamente pela rampa de Santos e pelo Aterro, sob a primeira claridade do luar que subia."

4 comentários:

joshua disse...
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joshua disse...

«Ainda o apanhamos!» Obviamente que o país que morava nas personagens e na experiência escrevente que as gizou ainda agora é esse esgrouviado Ega e esse diletante desencantado chamado Carlos, correndo em vão atrás do "americano" da des-idiotização.

Há na mesma o peso de uma periferia do espírito que não nos larga nem com Expos nem com Euros nem com Otas nem com TGVs nem com nada.

Cruzemos os braços e aceitêmo-lo.

Descruzêmo-los somente por uma suculenta foda ou por um arroz de cabidela, para não dizer um leitão da Bairrada ou um bom rodízio.

Anónimo disse...

Outros retratos deste país:

Citanto Raul Brandão em “os Pescadores”:

“A velha que tenho diante de mim é o tipo que esta vida foi transformando, amolgando, rugas por onde têm caído as lágrimas, mãos deformadas e negras, que ganham o pão de cada dia, cheiro a salmoura, e uma beleza extraordinária, a beleza da verdade e da vida trágica, dos que cumprem a existência e só caiem esfarrapados e exaustos...
...
Tive sempre a ideia que quem manda em todo o país é a mulher. Na lavoura às vezes o bruto bate-lhe, mas é ela que o guia e lhe dá os mais atilados conselhos. E é ela em toda a parte que nos salva, parindo filhos sobre filhos para a emigração, para a desgraça e para a dor. Creio que só assim parindo e gemendo, tecendo e lavrando, mas principalmente parindo é que se equilibra a nossa balança comercial, o que nos tem permitido viver como nação independente. Valem mais que o homem, sacrificam-se mais que o homem ....
...
Da praia para cima só elas põem e dispõem. Eles, saindo do barco, metem-se na taberna e bebem. .... Se as mulheres lhes batem, como corre, na verdade acho bem feito. – Eles merecem-no.”

Se os Carlos e os Egas deste país fossem de outra estirpe - ou tivessem uma mulher que lhes desse uma tareia “obrigando-os a ir para o mar”(metafóricamente falando) - talvez “cumprissem a existência” sonhando e realizando um país melhor.

Anónimo disse...

«Linda homenagem»