16.6.05

EUGÉNIO

Nem sempre o homem é um lugar triste.
Há noites em que o sorriso
dos anjos
o torna habitável e leve;
com a cabeça no teu regaço
é um cão ao lume a correr às lebres.


De O Outro Nome da Terra


Não falei do outro morto ilustre, o Eugénio de Andrade. Numa outra encarnação, mais dada às "letras" nos jornais, desloquei-me ao Porto, essa cidade que tanto gosto, para entrevistar Agustina. Lá estive na casa do Campo Alegre. Era Inverno e a escritora acolheu-me ao pé de uma mesa que escondia uma lareira, suponho que eléctrica. Pelas pernas, pôs uma manta. Entrava e saía constantemente um amável cão. Mostrou-me os jardins com uma maravilhosa vista para o Douro e ofereceu-me um exemplar da sua "Florbela Espanca", dedicando-o à "lembrança de uma conversa de longos caminhos, minuciosos e inacabados". Falámos inevitavelmente de Eugénio de Andrade e eu mencionei que trazia o seu telefone de casa para um contacto. Cá fora, numa cabine de telefone público - não havia telemóveis -, marquei esse número que nunca chegou a ser atendido. Desencontrei-me, pois, desse encontro não marcado com o poeta. No seu desaparecimento, praticamente ninguém se poupou nas palavras. Logo sobre Eugénio, um poeta com uma noção tão perfeitamente enxuta do seu uso. Uma das melhores "falas" sobre Eugénio de Andrade pertence a Joaquim Manuel Magalhães, poeta também, e seu amigo. Foi ele quem me contou - estava eu na tropa em Tavira - a "origem" de "As Mãos e os Frutos", presumo que sem qualquer espécie de ironia. Eugénio também tinha estado na tropa em Tavira. E aqueles poemas ali terão sido escritos ou pressentidos, numa época em que notoriamente as mulheres ainda estavam longe de ter guarida em quartéis. "A tua vida é uma história triste./A minha é igual à tua./Presas as mãos e preso o coração,/enchemos de sombra a mesma rua." Ou : "Os teus olhos férteis de promessas/vão-se, e a noite fica fechada". Ou ainda esse magnífico "Espera": "Horas, horas sem fim/pesadas, fundas,/esperarei por ti/até que todas as coisas sejam mudas./ Até que uma pedra irrompa/e floresça./Até que um pássaro me saia da garganta/e no silêncio desapareça." É preciso dizer mais alguma coisa?

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