31.7.04

À BEIRA-MAR

Quando, há muitos anos, comecei a escrever no Semanário do Victor Cunha Rêgo, "estreei-me" com um texto arrancado à leitura de um livro do Joaquim Manuel Magalhães, Os Dois Crepúsculos (Ed. A Regra do Jogo), depois de uma saborosa conversa na extinta "Ferrari" da Rua Nova do Almada. Mais propriamente -porque estávamos em Agosto, o mesmo Agosto que amanhã começa -, a um ensaio intitulado Sobre Praias. Ocorreu-me esta pobre lembrança depois de ler no Abrupto o "post" O Mar. Contrariamente ao que sugere Pacheco Pereira, não há nada de "reaccionário" nas suas belas três linhas sobre o mar "abstracto", que não é mais do que isso, a solidão não invadida. Eu não sei se o autor leu o ensaio do Joaquim, escrito no final dos anos 70. As suas três linhas, afinal, são um inesperado "sumário" desse ensaio. Ano após ano, a "balbúrdia" e a "praia dos corpos" acentuam a morte lenta do "fio do horizonte", tapado pela multidão dos indiferentes a que só se vê em linha recta. Pergunta o Joaquim: com que nomes chamaremos as centenas de seios fazendo malha, o punhado de meninas espremendo-se para o punhado de meninos que escarram de perna aberta e vêem quem corre mais, o cerco de pilosas barrigas aguardando as lautas digestões para meter o cu no mar? E continua. Eu não estou a defender que as praias sejam só para alguns, nomeadamente os que, por educação, se sabem servir delas.(Embora fosse bom que todos os que dela se sirvam, tivessem sido educados em equilíbrio.) O que estou é a dar voz ao pavor, talvez pessoal, sem dúvida aumentado pela mediocridade das situações, de nelas assistir à massificação dos desejos. O crescente desaparecimento da ideia de no verão se fazer outra coisa senão ir à praia é o equivalente de julgar que se não merece um ordenado se não se trabalhar as horas que o sindicato manda, que se não pode ousar o que ousam os homens por se ser mulher, que se não deve nunca desligar a ideia de sexo da de procriação. Ao mesmo tempo, não deixa de ser assustador pensar que meio país passa um mês não a realizar um projecto que durante o ano o trabalho não lhe deu tempo a pôr de pé, mas a estourar horas, entre refeição e refeição, entre sesta e sono, sem querer um pouco mais além, sem sequer fazer dessa atitude uma filosofia que, se o fizesse, não viveria assim. Uns chamam a isto o acesso das massas ao lazer. Eu chamo-lhe o vazio.(...) É isto a sociedade de massas: promover que todos queiram a mesma coisa, até ao ponto de todos exigirem de si que queiram a mesma coisa que todos. Quer se planifique o desejo, quer se faça dele mais-valia, vai tudo dar ao mesmo montão de gente que, neste caso, está à beira-mar.

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