16.6.05

CUNHAL A SEIS TEMPOS



1. Finalmente o país parou para ver passar o dr. Álvaro Cunhal. Há 31 anos, aquando da sua chegada triunfal ao aeroporto de Lisboa, o personagem que desceu do avião era, ainda, um mistério. As primeiras imagens e as primeiras palavras recortavam a figura definitiva que os “anos brasa” da revolução iriam consagrar. O porte aristocrático, o olhar hegeliano da “noite do mundo”, o discurso cortante, a mordacidade evasiva, a concentração obsessiva, o messianismo do “colectivo”, tudo isso apareceu imediatamente a preto e branco na única televisão da época. Os exilados que regressavam no mesmo avião em que viajava Cunhal afastaram-se prudente e respeitosamente dele. Deixaram-no sozinho com as suas notas. Era o único que sabia perfeitamente ao que vinha.
2. As imagens de “Daniel” e de “Duarte” - da resistência clandestina à ditadura - mostram o homem bonito e sedutor que Cunhal nunca deixou de ser até ao fim. Explicava que a “força” vinha da convicção. E que a convicção obrigava ao combate e à resistência. Em certo sentido, Cunhal faz parte de um mundo que pouco ou nada diz à maior parte dos homens videirinhos dos dias de hoje. Justamente eles jamais conseguirão perceber que, para Cunhal, era uma impossiblidade intelectual o cometimento da mínima cedência aos “princípios” e ao “ideal”. Nem sequer o porquê da inadmissiblidade da discussão da “justeza” comunista. Por isso Cunhal é insusceptível de alguma vez poder ser acusado de “travestismo” político. Ele era aquilo que ele era e nunca poderia ter sido outra coisa. Não significava isto qualquer limitação da inteligência, em sede da qual recolhe a unanimidade de “superior”. Pelo contrário, no seu “sentido único”, Cunhal foi de uma verticalidade rara. E, por aí, igualmente um homem raro.
3. Valeu a pena o país curvar-se perante a sua memória? Valeu. Álvaro Cunhal é incompreensível para a geração do “25 de Abril”. Tê-lo lembrado por ocasião do seu desaparecimento, foi um serviço bem prestado à memória contra o esquecimento. Serve de muito pouco, no entanto, ao oásis acéfalo que é, na generalidade, a actual sociedade portuguesa. Como é que se explica ao país da “quinta das celebridades” e da bola que um homem pode aguentar, em nome de um ideal e da emancipação económica e cultural do seu povo, oito anos de isolamento prisional? Eu creio que Cunhal percebeu muito cedo que andava literalmente a pregar no deserto. O mérito dele – e a nossa vergonha – é ter continuado a pregar, sem a mínima tergiversação. Não cuido agora de saber se tinha razão. Sabemos que não tinha. A sua visão do “pacote” da democracia era radicalmente diferente daquele que nós, par delicatesse, aceitamos. Ceder nunca fez parte do seu vocabulário, porque sempre representaria “outra coisa”. Ora se havia “coisa” que Cunhal detestava, na coerência da sua “fé”, era o “outro” da “coisa”. Num livro do ano passado, Conversas com Álvaro Cunhal, Maria João Avillez perguntava, em 2000, se podia falar em “derrota” e “amarga”. Cunhal disse simplesmente isto: “amarga é uma palavra muito pequenina para o que foi”. Esta espécie de luminosidade amarga acompanhou os anos últimos, sem que, por um segundo, a antiga “convicção” tivesse alguma vez sido abalada.
4. Parece que é piroso revelar-se fascínio perante Álvaro Cunhal. Eu sempre o tive. Entre os meus quinze e dezasseis anos fiz parte da União dos Estudantes Comunistas (UEC). A minha breve e inócua militância traduziu-se por umas passagens por “cooperativas” alentejanas, pela assistência a reuniões meio clandestinas, nas casas de uns e de outros, dirigidas por um “controleiro” senior, em fazer “piquetes” na sede da UEC (nunca cheguei a perceber com que propósito) e a conviver esporadicamente com os “génios” femininos da então juventude comunista, a “Geninha” Varela Gomes e a Zita Seabra. Assisti, com fervor religioso, a alguns comícios em que o momento alto era a palavra vibrante de Cunhal. Li o “Rumo à Vitória” e sublinhei “A Revolução Portuguesa, Passado e Futuro”. Cantei, no coro do liceu, as “heróicas” do Lopes Graça. E, em momentos mais delirantes, andei nas ruas da Costa de Caparica a distribuir panfletos e a recolher “donativos”. Depressa me apercebi da frivolidade infantil desta desastrosa militância e “aburguesei-me”. Logo em 76, achei piada ao candidato presidencial dos óculos escuros, Eanes, apesar de o “nosso candidato ser Octávio Pato”. Leituras e companhias, o curso de direito e a emergência do “movimento reformador” de António Barreto e Medeiros Ferreira, em 1979, fizeram o resto. Anos passados sobre esta aventura, voltei ao convívio com Cunhal através do seu “Partido com Paredes de Vidro”. Mais recentemente, li a monumental “biografia política” de Pacheco Pereira, ainda a meio do caminho com apenas dois volumes publicados.
5. Isto tudo serve para dizer que eu respeito a “história” e a memória de Álvaro Cunhal. Tive familiares que estiveram detidos em Peniche ao mesmo tempo que o “camarada Duarte”. Tive e tenho familiares que sempre foram comunistas. Eu parti muito cedo e definitivamente numa outra direcção. Faltava-me tudo o que eles têm: acreditar no "homem", primeiro, e, pior do que isso, na sua "salvação", a noção de disciplina férrea, a “convicção”, a "felicidade pela coerência" e, sobretudo, a “história”. A Álvaro Cunhal, e à resistência moral e física de tantos outros comunistas e não comunistas, devemos hoje até o direito a sermos parvos. A força imbatível da liberdade “absorveu” e neutralizou a tempo a “deriva totalitária”. Penso que já devíamos conviver todos bem com isso e sem grandes problemas "existenciais".
6. Deu-me um certo gozo ver o país do “respeitinho” democrático e da “era” dos “homens-plasticina” inclinado perante o féretro de Cunhal rodeado de bandeiras vermelhas. Lá no assento mais ou menos etéreo onde subiu, Cunhal, com a sua eterna subtileza irónica, deve ter sorrido e, olhando cá para baixo, murmurado uma vez mais “até amanhã, camaradas”.

1 comentário:

Anónimo disse...

Sim senhor, você é mesmo bom! Este foi o melhor texto que li sobre Cunhal por ocasião da sua morte, e houve tantos!
Todos nós, quer comunistas quer não (e no meu caso não) devemos a A.C. o exemplo moral de resistência e de dignidade com que conduziu a sua vida. Digamos que ele colocou a fasquia da ética muito alto, e nesse sentido foi inspirador do que deve ser o comportamento decente de qualquer ser humano na vida e especialmente perante a adversidade.
Como, pelos vistos, sou um bocadinho mais velha do que você, passei a minha juventude naquela tristeza e opressão do regime fascista. Nessa altura o nome Álvaro Cunhal era dito em segredo, contavam-se histórias de resistência, de fuga à prisão, o homem era um mito de tal ordem que nem sabíamos mesmo se existia, se era mesmo de carne e osso ou se era só um nome e um exemplo. Por isso, ele ajudou-nos a todos a resistir e a ter esperança na mudança. A nossa geração deve-lhe isso. Ao longo da vida e até hoje, muita gente mantém um comportamento decente, digno, vertical, não se vende, graças ao paradigma moral e ético fixado por ele (e outros como ele).
Por isso, farto-me de rir quando uns jovens epígonos de direita pretendem colar-lhe a etiqueta de "perdedor". Que sabem eles? E quem são eles???!!!