Eu cresci assim com um instinto de profundo nojo e repulsa pela actividade que consiste em ouvir as conversas alheias, devassar a respectiva intimidade, retirar a alguém o direito essencial a manter íntimo o que é seu e a manter secreta a sua correspondência.
Miguel Sousa Tavares, Público, 2.12.05
Imagine que, no seu local de trabalho, recebe um e-mail que não pediu para receber. Imagine que, quase diariamente, através desse meio electrónico de correspondência, lhe chegam coisas tão extravagantes - e que você não pede para receber - como apelos para achar meninas, meninos e cães perdidos, para dar sangue, para ir ver exposições, para bater no governo, para bater na oposição, no dr. Soares, no dr. Cavaco, no dr. Louçã, no sr. Jerónimo, generosas raparigas como Deus as colocou no mundo, "correntes da sorte" ou, dada a época natalícia, ofertas para comprar bacalhau. Imagine que alguns desses e-mails - que você não pediu para receber - são enviados por colegas ou mesmo por entidades "superiores", vindos originariamente de lugares aparentemente inesperados e extravagantes da República que, por sua vez, os recebem, supôe-se, da estratosfera. Imagine que, num desses e-mails "generalistas" - e que você não pediu para receber e que normalmente ignora -, vem apenas uma citação qualquer. Imagine que você responde privadamente à citação com uma ironia, um processo retórico que não está ao alcance de todos. Imagine que o remetente originário "dá troco" à ironia, juntando-lhe mais qualquer coisa proveniente de um terceiro, apanhado igualmente desprevenido pela violação da sua privacidade. Imagine que você, sempre em privado, volta a responder com nova ironia, recorrendo a uma citação alheia como quem diz "ah fulano disse isso? Isso vale o que vale. Também fulana disse isto". Imagine que o remetente originário, servindo-se do conteúdo privado trocado com ele, decide tornar público o e-mail com a sua citação. Imagine que, por causa disso, Kafka entra inesperadamente na sua vida, transformando a genial metáfora literária do antigo funcionário de seguros numa pequenina e mesquinha realidade onde a devassa continua, desta vez sob a forma "legal" de um "processo". Imagine que, à falta de melhor argumento, se recorre à cantilena da utilização de correio electrónico profissional em horário de expediente, quando toda a gente sabe em que é que praticamente toda a gente utiliza o correio electrónico profissional em horário de expediente, quando não existem regras claras e pré-estabelecidas para essa utilização, como, por exemplo, em determinadas empresas privadas. Imagine, pois, a quantidade e a qualidade da gente em causa e das "explicações" que teriam de ser dadas, lançando-se desnecessariamente lama para a ventoinha. Imagine, por uns breves instantes, que toda esta encenação se destina, no essencial, não tanto a criticar o acto ilegal da violação de correspondência privada - traduzido na divulgação pública, não autorizada, de um e-mail privado (que não deixa de ser privado por estar no correio electrónico profissional) - mas antes em tentar arranjar um pretexto para ver, lá onde ele não existe, "delito de opinião", à maneira "antiga" e com propósitos obscuros. Imagine que a sua (alguma) visibilidade, noutros meios para além dos "profissionais", incomoda sobretudo aqueles que, muito ciosos do "seu" direito e do seu pequeno "mundo", se levam estupendamente a sério. Imagine que isto se passava no país "aberto e plural" de que falam, por exemplo, todos os candidatos presidenciais sem excepção, trinta anos depois da "democracia" e da Constituição da República Portuguesa. Imagine, é certo, mas tenha a certeza de que, apesar disso tudo, "neste país em diminutivo, respeitinho é que é preciso".
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