4.3.04

AINDA A CULTURA...



O compositor e Prémio Pessoa Emmanuel Nunes que, para felicidade dele, vive e trabalha em Paris, escreveu uma notabilissima "Carta Aberta ao Governo e ao Conselho de Administração da Casa da Música" do Porto, publicada na edição do jornal Público. Junto-a ao repertório de reflexões sobre o estado da cultura no "Portugal coligado" que têm sido escritos neste "blogue", matéria sobre a qual D. Barroso e os "seus" não conseguem acertar o passo.

CARTA ABERTA AO GOVERNO E AO CONSELHO DE ADMINISTRAÇÃO DA CASA DA MÚSICA

Por Emmanuel Nunes

Este duplo endereço foi-me logicamente imposto na medida em que, caso as instituições ainda funcionem com um mínimo de rigor constitucional, certas decisões da máxima responsabilidade tomadas pelo CA da Casa da Música são necessariamente aprovadas pelo Governo na pessoa do ministro da Cultura. Decisões da máxima responsabilidade foram não só a expulsão de Pedro Burmester desse CA, como a sua não nomeação para o cargo de director artístico. Pedro Burmester cometeu um erro político tão grave quanto raro: ousou abertamente alertar as entidades governamentais e a opinião pública no sentido de que o CA a que pertencia preparava-se para desnaturar as funções primordiais do seu próprio projecto, tanto no plano arquitectónico interno, como, a longo prazo, nas bases fundamentais duma futura orientação cultural.

O projecto tal como ele o concebeu e defendeu possuía a semente desse erro: a Casa da Música deveria tornar-se um centro nacional e de utilidade pública ao serviço da vida musical e teatral de Portugal, e, através dessa função (não sem ela!), lograr uma projecção internacional simplesmente pela qualidade das diversas realizações - acção bem mais importante que a de qualquer embaixador cultural. Uma tal ambição é obviamente contraditória com a ideia de cultura enquanto mercadoria sujeita a critérios de mais-valia e de rentabilidade. Desgraçadamente, mas por uma espécie de justiça imanente, tais critérios levam sempre a uma projecção cultural quase nula e a uma rentabilidade ridícula. Neste sentido permito-me citar uma passagem da minha locução proferida na cerimónia de entrega do Prémio Pessoa: "Insisto mais uma vez na impossibilidade de uma irradiação autêntica da vida musical portuguesa, sem uma verdadeira vontade política, que passe pelo reconhecimento incondicional da importância do ensino especializado e da prática da música - ambos de nível europeu - no seio da nossa sociedade. É de certo verdade que um tal investimento político em nada mudará a tendência de qualquer panorama eleitoral. É ainda verdade que um tal investimento económico nunca será rentável da mesma forma, nem com a mesma eficácia imediata, de outros investimentos. Mas é uma verdade ainda certa que toda a elevação do nível de qualquer classe profissional conduz inevitavelmente, mais cedo ou mais tarde, ao desenvolvimento cultural, e por que não económico, de todo um povo." Em contrapartida, e neste caso concreto de manobra política: a verdadeira população cultural fica na mesma situação económica e com menos condições de cultura (os impostos não baixam em função da qualidade das proposições), enquanto que os chamados gestores culturais progridem financeiramente mas não no campo da sua cultura, a qual geralmente é pouca.

Consideremos concretamente o aspecto da projecção internacional como reflexo duma autêntica actividade nacional: em quarenta anos da minha actividade profissional em vários países da Europa, é com a criação do Remix Ensemble que, pela primeira vez, posso propor a qualquer manifestação internacional para a qual sou convidado a participação de um grupo português de música contemporânea como alternativa equivalente a qualquer outro grupo internacional. A razão reside simplesmente no funcionamento geral e nas prioridades da direcção do Remix, e na sua escolha da qualidade e mentalidade dos instrumentistas nacionais e estrangeiros que nele participam.

Nunca fui bem sucedido com as minhas exortações, por motivos diversos, junto dos ministros da Cultura José Carlos Sasportes e Pedro Roseta, para não falar de Pedro Santana Lopes, a quem tive o bom senso de nunca me dirigir. Num primeiro contacto por escrito com o actual ministro, e noutro contexto, assinalei "a minha desaprovação e quase indignação quanto aos resultados do último concurso para apoio às actividades musicais de carácter profissional e de iniciativa não governamental do IPAE, já que tive acesso casualmente a uma série de candidaturas apresentadas, bem como a algumas actas incompletas e não fundamentadas desse concurso... Como deve imaginar, não tenho a mínima intenção pessoal de pedir apoio económico ao IPAE, nem desejo ser convidado para fazer parte de futuras comissões" (10 de Março de 2003).

Em Junho de 2003, no Porto, após a eclosão do conflito com o ex-presidente do CA, tive uma conversa telefónica prolongada com Pedro Roseta, na qual declarei com firmeza a necessidade de manter Pedro Burmester como garante da boa finalização do projecto, e depois como director artístico da Casa da Música. Nem Jorge Sampaio alcançou tal objectivo, a quem, por uma antecipação casual, eu tinha escrito: "Permite-me que peça que dediques um tempo ínfimo do teu imenso trabalho a exercer uma certa vigilância sobre a orientação e a prática de uma política musical no nosso país" (8 de Janeiro de 2001).

Ao contrário do que declarou António Pinho Vargas - "a situação não é preocupante ainda" -, contraponho a minha convicção, sem qualquer alarmismo, de que a situação é gravíssima. No caso de o Governo não renunciar à "baixeza" política de eliminar Pedro Burmester, e de não estar disposto a dar a prioridade aos verdadeiros interesses da comunidade musical e cultural do país, assistiremos à destruição "pacífica" do mais importante projecto musical português dos últimos quarenta anos. Seria o que eu chamaria o luxo da miséria.

Pedro Burmester cometeu um erro político tão grave quanto raro: quis impor a cultura musical contemporânea em Portugal subindo os degraus passo a passo, e banir, tanto quanto possível, o oportunismo e a falta gritante de deontologia da tentação do elevador.

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